segunda-feira, 18 de outubro de 2010

11. Davi e Golias


            Na cidade em que trabalho existe uma região chamada de Gorutuba. Lá residem vários descendentes quilombolas escravos. Essa descendência exprime aos moradores daquele lugar um biótipo másculo, forte, alto  A média de altura dos homens chega a beirar um metro e noventa e cinco centímetros, isto a média, logicamente há aqueles que ultrapassam e muito essa medida.
Não bastassem as características da herança genética, aquela população vive única e exclusivamente do trabalho braçal, torneando e definindo ainda mais os braços dos gorutubanos.
Os nomes desta família gramatical - gorutubano, Gorutuba – fazem despertar sentimentos diversos nos fisicamente menos favorecidos, o principal deles, o medo, pois, além do corpo atlético e musculoso, o povo daquela região traz incutido um histórico de situações violentas desencadeada quase sempre por motivos fúteis.
            Há o exemplo do cidadão que matou um vizinho com vários golpes de facão por causa de uma cachaça. Houve aquele um que ceifou a vida de um senhor idoso por discussão acerca de um rádio velho. Por estas e tantas outras histórias que seguem a mesma linha de ação, criou-se um mito de que os gorutubanos são pessoas ríspidas, bravas e de “pavio muito curto”.
            Sabemos que a minoria desse povo está imbuída nestes fatos delituosos. A maior parte deles é composta de pessoas boas, amigas e muito hospitaleiras. É muito agradável ter contato com a gente de lá. Há de se convir porém que se encontrar um gorutubano bravo, saia da reta, pelo ao menos é o que dizem os moradores alheios àquela região.
           Tive uma experiência um tanto embaraçosa eu diria, com um dos moradores daquele local.
Naquele dia eu passeava tranquilamente, sem farda, pela cidade. Uma mulher chorosa interceptou-me e, muito nervosa, relatou o seguinte:
            _ Seu policial! Um homem veio até meu comércio, cobrei uma conta antiga dele e ele simplesmente começou a me desacatar, me xingar “disso e daquilo”. – O disso e daquilo ela me disse bem quais expressões foram só que acho que não convêm abaixar tanto o calão das palavras postas no texto, então desconsideremos. - Continuou: _Depois ainda pegou um chapéu da loja, pôs na cabeça e saiu.
            Tão logo tomei conhecimento dos fatos, providenciei para que a metade do efetivo policial da cidade (somos o total de dois militares, faça os cálculos e descubra "quantos é” a metade desse efetivo) atendesse a injuriosa ocorrência.
            A dona do estabelecimento, mal acabara de contar o caso, viu o cidadão e me mostrou.
            _Olha ele lá. Afirmava apontando vigorosamente o dedo indicador na direção do homem.
            Virei-me subitamente e num rápido golpe de vista percebi o tal fulano descendo a rua. Devido ao rápido movimento que fiz com a cabeça, por um instante, pensei ter ficado com um pouco de confusão, mental, já que para mim não era uma pessoa que descia a via e sim um guarda-roupa duplex com polimento e tudo, tamanha era as medidas daquele senhor.
            Perguntei um tanto esmorecido:
            _ A senhora tem certeza que é aquele mesmo? Não julgueis para não serdes julgado. Tá na bíblia lembra dona?
            _ É ele mesmo, eu tenho certeza. – Reafirmou categoricamente.
            Imaginem aquele gorutubano de um metro e noventa e cinco de altura que citei anteriormente. Conceda-lhe mais uns vinte centímetros e some trinta ou quarenta quilos a mais sobre seus noventa de peso bruto. Fez a conta? Agora acelere esse resultado, e pode acelerar com força  mesmo para encontrar as medidas do gigantesco moço.
            Eu sabia que existia homem grande, mas daquele tamanho nem mesmo em filmes. Aliás, vocês se lembram do Incrível Hulk dos cinemas? O verdão seria um filhote perto dele.
            Parcialmente destemido aproximei, (não muito perto é lógico), e com toda cautela do mundo (prestem atenção, não é medo é cautela) parei minha “motinha 125” do outro lado da rua e o encarei. Percebi em seus olhos, que de natureza já são vermelhos, um forte ar de embriaguez. Disse a ele então com bastante vigor:
            _ Ô cidadão! Sobe lá no quartel que eu quero falar contigo!               
            _ Quem é você? – Perguntou-me com cara de desagrado.
            _ Sou policial. Que pergunta besta é esta? Sobe lá logo!         
            Comecei relativamente bem, afinal ele acatou minha ordem e começou a ascender à rua.
            Aproveitando esse espaço de tempo, até a chegada dele ao quartel, corri e fui chamar o sargento. Não por temor, todos sabem que é o procedimento normal dar ciência ao superior de fato que foge a normalidade - se alguém afirmar que uma pessoa naquelas proporções é normal, eu tenho de rever meus conceitos urgentemente.
            Não encontrei o chefe e o dito cujo já estava na porta do quartel. Agora tinha de tomar as providências sozinho. Era Davi contra Golias, mas mesmo assim fui.
Chegando a sede do destacamento, parei minha motocicleta meio longe dele, passei o pé umas três vezes para encontrar o pedal do descanso, desci com pernas mais ou menos firmes, “três-oitão” cheio de bala na cintura, abri o portão e entramos. Vou ser sincero, minha primeira intenção era colocá-lo na grade, enfiá-lo no calabouço, só que, quando passei ao seu lado para abrir a porta do quartel, olhei para cima e mudei completamente de opinião. Não me interpretem mal, é que hoje a polícia prega a interação com a sociedade, policial amigo do cidadão, tem um tal de polícia comunitária, direitos humanos... sendo assim e pensando unicamente nesses preceitos, resolvi só adverti-lo.
Agora que estávamos demasiadamente próximos, falei com um tom um pouco mais brando do que quando estava do outro lado da rua, em cima da moto funcionando e apontada sentido descendente da via. Expressei-me em voz baixa, porque imaginei que ele certamente não era surdo: tinha cada lapa de orelha. Prossegui no diálogo:
            _ Que aconteceu lá em dona Erundina meu irmão? - Perguntei para ele.
            Antes mesmo de proferir qualquer palavra, o “bichão” olhou fixamente para mim, sentou, cruzou os braços e, quando fez esse último movimento, menino de Deus! Levantaram duas batatas de bíceps que me obrigaram a afastar sorrateiramente em direção a porta e segurar no cabo do revolver. Seus braços dobraram de espessura naquela posição.
             Eu, no auge dos meus um metro e sessenta e cinco de altura, nem cogitava a possibilidade de segurar aquele bicho na unha, caso ele encrespasse. Com o bastão de madeira eu já tinha feito uns testes dias antes: bati com bastante força num bloco de cimento e só na quinta vez o bloco foi danificado. Fiz uma breve e mental analogia entre o cimento e o gorutubano, previ que: se o bloco danificou na quinta pancada, para machucá-lo seria da oitava para lá, então, de cara descartei essa possibilidade de defesa. Além do que, o bloco de cimento não esboçou nenhuma reação ao receber as pancadas e ele, muito provavelmente, não ficaria tão quietinho.
                Bêbado que estava, abaixou a cabeça e começou a fungar profundamente. Parecia um touro preparando para atacar o toureiro. Cada fungada que ele dava, eu rezava três Pai Nossos e duas Aves Maria, por pura precaução, é que eu também, como as pessoas normais, costumo rezar. Tá certo que antecipei o horário das orações de meia noite para duas da tarde, tudo culpa do meu relógio que estava desregulado naquele dia.
Eu olhava de relance para a porta de saída do quartel e já marcava o meio da rua, não era para correr de medo, isso nunca! Eu apenas achava que ele estava entrando num colapso nervoso e talvez precisasse de um médico, nesse caso eu sairia correndo sim. Somente neste caso.
             Para acalmar aqueles que estão com medo só de ler esse texto, devo lembrar que o cidadão sentiu a firmeza no tratamento que dispensei a ele. Eu, sozinho fiz com que seu fungado se transformasse em soluço, e o soluço, em choro, choro de uma criança que tem seu doce roubado. Com olhos cheios d´água disse para mim:
            _ Ô seu “pulicial”; eu não queria fazer aquilo não. Me desculpe, é que tomei umas duas e...
            Diante da fra(n)queza do moço, eu cresci, ora se não! Ajeitei a calça, tirei a mão do revolver, retornei para o interior do quartel e bravamente falei:
            _Ó rapaz, eu não quero saber de bagunça na minha cidade! Se eu te pegar de novo vai se ver comigo, só não vou te prender hoje por que... Aquela ladainha que todo mundo conhece bem.
            O gorutubano desculpou-se, voltou ao comércio da Dona Erundina, pagou a conta e devolveu o chapéu.
            Sem levantar um dedo sequer, dominei um homem de quase três metros, será que é isso que chamam de força da mente?


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