quinta-feira, 14 de abril de 2011

17. A continência

A continência é um gesto de respeito existente nas corporações militares e que obrigatoriamente, o subordinado tem de prestar para o superior, quantas vezes passar por um.

Nos batalhões escola este sinal é cobrado com peculiar veemência e a sua omissão implica em admostação verbal, que é a sanção mais branda, até perda de pontos no conceito do militar, esta sanção cumulativamente aplicada pode culminar até na exclusão do faltoso da corporação.

Por ocasião de uma reunião informal de aspirantes a sargento, no pátio da cantina de um destes Batalhões escolas na nossa capital mineira, aglomeraram-se oito militares, formando um círculo, dentre eles eu. Uns tomavam café, outros fumavam, alguns contavam piadas, uma panacéia só. Todos faziam tudo menos a continência obrigatória para os superiores (Sargentos, tenentes, capitães) que por ali passavam.

Inesperadamente, um outro soldado que não fazia parte do displicente grupo, aproximou-se de nós com cara de assustado e com quase um palmo de língua para fora disse: “Aquele sargento ali está chamando vocês!”.

A essa altura do campeonato os despercebidos militares, mesmo não sabendo do que se tratava, já molhavam as calças. Atravessavam correndo o pátio, cheio de poças d´água, para atender o chamado do superior. Manhã chuvosa tinha sido aquela.

Fomos até o sargento. Este graduado tinha mais ou menos dois metros e vinte e sete centímetros de altura, avaliando por baixo. O homem era alto e tinha olhos vermelhos, parecia o gorutubano, só que era bastante branco. Ele olhou fixamente para nós e com a raiva de um cão que está acometido por essa moléstia, começou ler a bula:

_ O que vocês são? Coronéis? Tenentes-coronéis? São Majores....?

Passou por mais de vinte postos e graduações até chegar ao que realmente éramos: soldados.

Aí percebemos que tínhamos feito algo de errado. Ou deixado de fazer o certo pelo ao menos.

Ele continuou ainda mais nervoso:

_Por acaso vocês estão dispensados de prestar a continência?

De tão nervoso que ele estava nem ousamos responder a seus questionamentos e, pensando bem, acho que foi o melhor que fizemos.

A força de sua voz e a força de nossas pernas era inversamente proporcionais, quanto mais alto ele falava, mais fracos nossos membros inferiores ficavam. Nunca na minha vida havia visto uma pessoa tão nervosa. Só parava de esbravejar para respirar um pouco, puxava o ar e começava tudo de novo:

_ Que falta de compromisso com a instituição! Que desrespeito! Passaram mais de duzentos e trinta e nove superiores por vocês e para nenhum, nem mesmo, uma única vez, algum de vocês prestou a continência regulamentar. Vocês acham isso correto?

Pensei que duzentos e trinta e nove seria um número um pouco elevado e exato demais, no entanto eu estava bem mais preocupado em me defender das gotículas de cuspe que voava da boca dele em minha direção, do que com cifras matemáticas. Como estávamos na posição de sentido, e nesta posição não se pode mexer, me limitava apenas a fechar os olhos quando observava a gotinha vindo ao encontro do meu rosto. Abaixava uma pálpebra por vez para ela não pensar que eu estava dormindo. Quando vinham duas gotas, o jeito era escolher qual olho seria o premiado, e rezar para o respingo não cair na boca.

Num momento ele parou e com aquele olhar penetrante, concentrou num dos nossos colegas e com voz ainda mais alta, soltou:

_ E você? Foi você! Você mesmo!

O menino, que já era branco, ficou amarelo. Suas calças tremiam seguindo o ritmo das pernas.

_ Inclusive você! – Falava o sargento espumando a boca.

Quando o sargento levantou o dedão e cutucou o peito do pobre PM, o menino começou a virar o olho. Tadinho, não agüentou a pressão. O sangue da cabeça fugiu para os pés e o líquido da bexiga acompanhou, só que vazou antes de chegar aos pés. Eu, de relance, olhava aquilo e pensava: “Agora ele desmaia”. Do lado dele, fiquei sem saber se cometia outra infração disciplinar saindo da posição de sentido sem a devida autorização, para tentar acudi-lo ou o deixava cair e rachar a cabeça no chão.

Na mente de nosso amigo possivelmente passava o seguinte questionamento: “O que fiz para esse homem ficar com tanta raiva de mim?”.

O Sargento (sem exageros) ficou por cinqüenta e três minutos e dezoito segundos, apontando o dedo no peito do pracinha e berrando:

_ Pois foi você. É você... – E o polícia balançava para frente e para trás, igual João-bobo murcho. Pernas tremendo, olhos revirando, esta era a imagem de um homem sendo duramente repreendido.

Na minha avaliação ele no mínimo, além de deixar de prestar a continência, havia falado mal da mãe do Sargento, e este sargento, apesar de não parecer, também devia gostar da pessoa que o pôs no mundo.

O superior completou seu raciocínio e finalizou:

_ Você! É você mesmo. Você foi o único que prestou a continência. Parabéns! Que você sirva de exemplo para os demais.

Aí já não tinha mais jeito, o desmaio era irreversível, o soldado mesmo elogiado, despencou desfalecido no chão.



Um comentário:

  1. heheheheeh eu ri com essa...
    essa aki foi otima: Abaixava uma pálpebra por vez para ele não pensar que eu estava dormindo.
    rsrsrs coitado do carinha, um ano pra falar que ele estava certo...

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