quarta-feira, 22 de junho de 2011

19.A carne envenenada

Aquela senhora chegou desesperada ao quartel. Disse que havia discutido com seu marido e expulsado o infeliz de casa. Segundo ela, dois dias após a discussão, ele voltou e a presenteou com três quilos de carne, coisa que fugia ao seu costume de pão duro.

A dona podia seguir duas linhas de raciocínio diante deste fato. Na primeira, podia pensar que a carne, um generoso pedaço de lombo, seria um estímulo a mais para o bom coração da esposa aceitar o marido traidor de volta no seio do lar. Na segunda hipótese, a mais cruel delas, levava a mulher a crer que aquele naco de carne estava recheado de veneno de matar rato. Certa que a segunda alternativa era a mais provável e que veneno de rato também mata gente, ela correu e nos procurou no quartel:

_ Seu policial! Meu marido brigou comigo e me trouxe esse lombo. Cheira pra você ver, está fedendo veneno!

Abri a sacola, cheirei a carne e apesar do tom meio roxo-esverdeado não senti cheiro de veneno, se é que eu reconheceria este cheiro caso ali realmente tivesse.

_Eu tenho certeza que tem veneno. É que você não conhece aquele traste, ele nunca me dar nada, agora vem com essa história de me dar carne. A carne que ele tem que me dá ele não dá. Tenho certeza que tem veneno, cheira mais de perto!

A dona encostava o nariz no lombo e queria que eu fizesse igual.

_Sai fora dona! Vou encostar o nariz nessa carne nada. Vai que tem veneno mesmo e aí? Negativo vou encostar mais não!

O praça que estava comigo já saiu para o lado de fora do quartel temendo que eu pudesse pedir para ele cheirar a carne.

_Pode cheirar, tem nada a ver não! – A senhora insistia.

Como a dúvida pairava no ar não podíamos efetuar a prisão do suposto autor. Sem um forte indício de a carne estar envenenada era impossível atuar repressivamente. Era necessário realizar testes mais precisos para não cometer nenhuma injustiça. Vai ver que o desgramado do homem tinha se tornado bonzinho de uma hora pra outra mesmo. Por acaso é pecado, é crime?

Onde conseguir um laboratório eficiente o bastante para identificar qualquer resquício de substância venenosa inserida naquele verde pedaço de carne? No destacamento que não deveria de ser, talvez na capital do estado a setecentos quilômetros dali e olhe lá.

Àquela altura, a carne já exalava um cheiro esquisito sim, só que não era de veneno, era de podre que já estava se tornando devido ao avançar das horas.

Não tínhamos nem laboratório nem mesmo tempo hábil para levar a carne até um. Fomos obrigados a recorrer aos meios alternativos tão exigidos nas cidades com poucos recursos tecnológicos como a que eu mais uma vez estava trabalhando.

Como saber se a carne estava envenenada? Se eu fosse um camarada mal, sugeria dar um pedacinho para a gata da vizinha. Como não faço isso com gatas, resolvi andar um pouco pelas ruas, com algumas tiras da carne suspeita dentro de uma sacola, com o objetivo de espairecer, refrescar a cabeça em busca de boas idéias.

Como um sinal que vem do céu, a todo o momento, eu via cachorros e mais cachorros perambulando pela rua. Cães de toda espécie, cor e tamanho, nunca tinha visto tamanha diversidade como naquele dia. Só podia ser um sinal. Por mais que eu lutasse contra a vontade de dar um pedacinho do alimento para os bichos, aqueles olhinhos famintos brilhavam como se me pedissem: “Me dê um pedacinho, por favor, me dê!”. Eles não resistiam ao cheiro que a carne exalava e eu não pude resistir as suplicas desesperadas dos pobres animais.

Afirmo com absoluta sinceridade, se eu tivesse certeza que a carne estava envenenada eu não daria para eles, mas já que restava certa margem de incerteza e eles estavam com fome, joguei um pedacinho para dois cachorros que, por mera coincidência do destino, eram os mesmos que latiam a noite inteira próximo a minha casa e não me deixavam dormir.

Retornamos ao quartel e quando preparávamos para certificar que os animais não mais sentiriam fome, nem dor, nem qualquer outro sensação característica de um ser vivente, a cozinheira do quartel chegou nervosa e disse que não ia fazer comida naquele dia, pois ela tinha que consolar seus meninos, os dois cachorros de estimação deles haviam morrido.

E por falar em coincidência, aquela sim havia sido uma infeliz. Como que eu poderia imaginar que o homem tinha tido mesmo coragem de colocar veneno na carne que ofertara a sua esposa. É isso que dá confiar nas pessoas.

O motivo da morte dos animais permanece um mistério até hoje, pelo menos para a cozinheira. Tenho de admitir que não fosse a consciência cobrando o assassinato dos cães por envenenamento alimentar eu estaria dormindo o sono dos anjos, pois agora reina um silêncio abençoado nas redondezas de minha casa.