domingo, 7 de agosto de 2011

20. Mitsubish - L 200


Lutei cinco anos de minha carreira para trabalhar em uma viatura decente e que realmente atendesse as necessidades das más conservadas estradas do extremo norte mineiro. Quando menos esperava, chegou  uma caminhonete: cabine dupla, quarto por quatro, novinha em folha era tão chique que nem o nome eu sabia pronunciar direito (É esse aí do título).

Se já rodávamos muito pelas estradas de chão com a viaturinha pequena, que dirá agora com essa que dava até trabalho de embarcar devido à altura das rodas.

Para estrearmos aquela máquina resolvemos dar uma patrulhada lá pelas bandas de um povoado chamado Bem Querer. Um conselheiro tutelar, o mais tímido e calado deles, nos acompanhou.

Nem bem chegamos ao distante e empoeirado povoado, duas moças nos abordaram e disseram que em um local a duas léguas dali residia um rapaz que constantemente ameaçava a mais velha delas e oferecia lhe dinheiro em troca de favores sexuais. A moça, muito religiosa, indignada com os indecorosos convites nos pediu auxílio.

Rumamos para o local onde morava o rapaz. No trajeto, logo que embarcou na viatura, a mais nova das moças disse que estava sentido dor de cabeça, mas a despeito de sua enfermidade ela conversava como se fosse o último dia de sua vida. Falava sobre os mais diversos assuntos: comida, festas, melhor dia de cortar o cabelo conforme as fases da lua. Até de futebol ela falou, por sorte torcia pelo cruzeiro se não eu não suportaria tanto falatório. A nós, como não restava oportunidade, só cabia ouvir.

O conselheiro tutelar, espremido que estava no canto da porta, torcia o nariz para a tagarelice da menina, pelo retrovisor eu percebia sua cara de reprovação. Fomos e voltamos nesse ritmo alucinante até que ela parou de falar repentinamente. Ficou seria e deitou no colo da irmã. Permaneceu quieta por cerca de vinte segundos - o que parecia muito para ela - aí levantou um pouco o pescoço, olhou para o conselheiro tutelar e para infelicidade de todos nós e principalmente dele, soltou um longo jato de vômito nas pernas e nos pés do rapaz. Ele gritou bravo:

_O Que é isso menina? – Pela primeira vez o conselheiro havia dito algo.

_Canjica! – Ela de modo inocente respondeu. - Comi demais ontem.

Em mim suscitou uma dúvida tremenda: preocupava-me com a saúde da garota ou quebrava seu pescoço por ter vomitado canjica na 'minha' viatura novinha. O conselheiro tutelar parece ter captado meus pensamentos e tendeu para a segunda alternativa:

_ Menina! Como você faz um negócio desses comigo? E agora como vou fazer para ir embora com essa roupa toda suja? - Questionou o conselheiro.

A moça muito simples pouco se importou com a bronca, limpou a boca, afastou o pé da poça que se formou no assoalho do carro e reiniciou o falatório.

Se eu fosse um pouco mais perverso, colocaria em prática a segunda opção enumerada três parágrafos atrás, mas como sou calmo, apenas fiz com que ela limpasse a sujeira todinha.

Terminado o serviço e com a viatura, em termos, ‘limpa’ (desconsiderando o cheiro de azedo remanescente e da roupa molhada do conselheiro) deixamos as moças na casa delas e já estávamos retornando para dar uma lavada melhor no carro quando a mãe das garotas agradecida por termos ajudado suas filhas, porém completamente alheia ao vômito da mais nova, agiu como reza os bons costumes do povo acolhedor da zona rural e nos convidou:

_ Entra pra casa meu filho vem comer um canjiquinha!

_ Eu não quero não dona só se o conselheiro aceitar. – Sugeriu o polícia que estava comigo.

O conselheiro a essa altura enchia as bochechas e colocava a mão na boca, como que se fosse repetir a ação da moça. Não se sabe ao certo se ele sentiu nojo da canjica daquela senhora ou da canjica expelida pela moça, que no final era a mesma. O que se sabia ao certo é que o azedo do cheiro, somado ao convite da mãe da garota embrulhou o estômago do rapaz. Só que desta vez deu tempo de evitar uma segunda tragédia.

_ Saia do carro, sai fora, sai logo! - Pedi gentilmente a ele antes que sujasse minha viatura novinha de novo.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

19.A carne envenenada

Aquela senhora chegou desesperada ao quartel. Disse que havia discutido com seu marido e expulsado o infeliz de casa. Segundo ela, dois dias após a discussão, ele voltou e a presenteou com três quilos de carne, coisa que fugia ao seu costume de pão duro.

A dona podia seguir duas linhas de raciocínio diante deste fato. Na primeira, podia pensar que a carne, um generoso pedaço de lombo, seria um estímulo a mais para o bom coração da esposa aceitar o marido traidor de volta no seio do lar. Na segunda hipótese, a mais cruel delas, levava a mulher a crer que aquele naco de carne estava recheado de veneno de matar rato. Certa que a segunda alternativa era a mais provável e que veneno de rato também mata gente, ela correu e nos procurou no quartel:

_ Seu policial! Meu marido brigou comigo e me trouxe esse lombo. Cheira pra você ver, está fedendo veneno!

Abri a sacola, cheirei a carne e apesar do tom meio roxo-esverdeado não senti cheiro de veneno, se é que eu reconheceria este cheiro caso ali realmente tivesse.

_Eu tenho certeza que tem veneno. É que você não conhece aquele traste, ele nunca me dar nada, agora vem com essa história de me dar carne. A carne que ele tem que me dá ele não dá. Tenho certeza que tem veneno, cheira mais de perto!

A dona encostava o nariz no lombo e queria que eu fizesse igual.

_Sai fora dona! Vou encostar o nariz nessa carne nada. Vai que tem veneno mesmo e aí? Negativo vou encostar mais não!

O praça que estava comigo já saiu para o lado de fora do quartel temendo que eu pudesse pedir para ele cheirar a carne.

_Pode cheirar, tem nada a ver não! – A senhora insistia.

Como a dúvida pairava no ar não podíamos efetuar a prisão do suposto autor. Sem um forte indício de a carne estar envenenada era impossível atuar repressivamente. Era necessário realizar testes mais precisos para não cometer nenhuma injustiça. Vai ver que o desgramado do homem tinha se tornado bonzinho de uma hora pra outra mesmo. Por acaso é pecado, é crime?

Onde conseguir um laboratório eficiente o bastante para identificar qualquer resquício de substância venenosa inserida naquele verde pedaço de carne? No destacamento que não deveria de ser, talvez na capital do estado a setecentos quilômetros dali e olhe lá.

Àquela altura, a carne já exalava um cheiro esquisito sim, só que não era de veneno, era de podre que já estava se tornando devido ao avançar das horas.

Não tínhamos nem laboratório nem mesmo tempo hábil para levar a carne até um. Fomos obrigados a recorrer aos meios alternativos tão exigidos nas cidades com poucos recursos tecnológicos como a que eu mais uma vez estava trabalhando.

Como saber se a carne estava envenenada? Se eu fosse um camarada mal, sugeria dar um pedacinho para a gata da vizinha. Como não faço isso com gatas, resolvi andar um pouco pelas ruas, com algumas tiras da carne suspeita dentro de uma sacola, com o objetivo de espairecer, refrescar a cabeça em busca de boas idéias.

Como um sinal que vem do céu, a todo o momento, eu via cachorros e mais cachorros perambulando pela rua. Cães de toda espécie, cor e tamanho, nunca tinha visto tamanha diversidade como naquele dia. Só podia ser um sinal. Por mais que eu lutasse contra a vontade de dar um pedacinho do alimento para os bichos, aqueles olhinhos famintos brilhavam como se me pedissem: “Me dê um pedacinho, por favor, me dê!”. Eles não resistiam ao cheiro que a carne exalava e eu não pude resistir as suplicas desesperadas dos pobres animais.

Afirmo com absoluta sinceridade, se eu tivesse certeza que a carne estava envenenada eu não daria para eles, mas já que restava certa margem de incerteza e eles estavam com fome, joguei um pedacinho para dois cachorros que, por mera coincidência do destino, eram os mesmos que latiam a noite inteira próximo a minha casa e não me deixavam dormir.

Retornamos ao quartel e quando preparávamos para certificar que os animais não mais sentiriam fome, nem dor, nem qualquer outro sensação característica de um ser vivente, a cozinheira do quartel chegou nervosa e disse que não ia fazer comida naquele dia, pois ela tinha que consolar seus meninos, os dois cachorros de estimação deles haviam morrido.

E por falar em coincidência, aquela sim havia sido uma infeliz. Como que eu poderia imaginar que o homem tinha tido mesmo coragem de colocar veneno na carne que ofertara a sua esposa. É isso que dá confiar nas pessoas.

O motivo da morte dos animais permanece um mistério até hoje, pelo menos para a cozinheira. Tenho de admitir que não fosse a consciência cobrando o assassinato dos cães por envenenamento alimentar eu estaria dormindo o sono dos anjos, pois agora reina um silêncio abençoado nas redondezas de minha casa.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

18. A motocicleta da discórdia

Aquele motociclista já estava passando dos limites. Subia e descia pelas ruas fazendo um barulho irritante e ensurdecedor. O dispositivo utilizado para diminuir o ruído emitido pelo veículo, a descarga, estava quebrado e o motoqueiro parecia gostar daquilo. A população ligava insistentemente para o quartel reclamando do estardalhaço que a moto promovia.

Uniu-se o barulho da moto mais o insessante e irritante toque do telefone para tirar o Policial Militar do sério. Já não agüentava mais aquela ladainha.

Saiu à procura do tal motoqueiro. Numa rua acima do quartel o viu passar ao longe, fazendo barulho e empinando aquela porcaria (o primeiro dos muitos adjetivos que o PM atribuiu ao veículo).

É pura provocação, ele pensava: “Bastou o motoqueiro olhar para mim para segurar o acelerador lá no final”. Aquele caco velho (adjetivo de número dois) roncava alto e ainda dava disparos semelhantes ao de um revolver.

O militar ficou possuído pela raiva - fato que dificilmente acontece – tanto que nem mesmo procurou um outro colega para auxiliá-lo na busca do que posteriormente intitulou de “amante do barulho e adorador do incômodo alheio”. Partiu sozinho com o objetivo de fazer a apreensão daquela motocicleta velha e a prisão do dono dela.

O ódio que o consumia também serviu de combustível para impulsioná-lo a localizar de forma instintiva o motoqueiro. Passaram três motocicletas, só de ouvido ele identificou qual que seria seu alvo. Do piloto, ele não guardou nenhuma característica de tão vidrado que estava com a moto. Correu as ruas da cidade até que avistou a motocicleta parada na porta de um boteco.

O militar estava à paisana (sem farda), mas como a cidade era pequena e já trabalhava ali há alguns meses, supôs que todos lhe reconheceriam, assim sendo não corria o risco de sua autoridade ser posta sob suspeita por alguém.

Entrou no barzinho cuspindo fogo, o coração estava palpitante, os olhos arregalados, aquela veia da testa estava para estourar, aquele seria o momento crucial, seria a hora certa, o dia “D”, o momento exato em que se deleitaria em prender o desordeiro e sua ensurdecedora motocicleta. Nada podia dar errado, quem poderia o impedir agora?

Deixou a boa educação de lado e partiu logo para a ignorância:

_De quem é aquela porcaria estacionada ali fora? - Bradou alto e forte.

Antes, porém ordenou que o dono do bar desligasse o som.

_Ô nego velho tem jeito de dar uma abaixadinha no volume aí, só para eu mandar um recado? - Por diversas vezes havia gritado e ninguém tinha lhe escutado, no quarto grito, com o som desligado, todos puderam prestar atenção nele. Pela quinta vez gritou ainda mais nervoso:

_ De quem é aquela porcaria vermelha lá fora?

Levantou-se de lá do balcão, um homem que não era menor do que o gorutubano do Davi e Golias. Era um monstro a julgar pela sua estatura. Não tinha menos de noventa centímetros de braço, e as pernas pareciam uns troncos de árvore. Caminhou em direção ao militar, estufou os peitos, cuspiu o cigarro de lado e disse:

_ Se a porcaria vermelha a que você se refere é uma moto que está estacionada lá fora, ela é minha. Por quê?

O militar parou, olhou o tamanho do camarada, pensou (...) pensou e sutilmente perguntou:

_ Quer vender ela? Se quiser mil contos eu dou agora? - Foi a única frase e possivelmente a mais inteligente que podia ter saído da boca do PM naquele momento.



quinta-feira, 14 de abril de 2011

17. A continência

A continência é um gesto de respeito existente nas corporações militares e que obrigatoriamente, o subordinado tem de prestar para o superior, quantas vezes passar por um.

Nos batalhões escola este sinal é cobrado com peculiar veemência e a sua omissão implica em admostação verbal, que é a sanção mais branda, até perda de pontos no conceito do militar, esta sanção cumulativamente aplicada pode culminar até na exclusão do faltoso da corporação.

Por ocasião de uma reunião informal de aspirantes a sargento, no pátio da cantina de um destes Batalhões escolas na nossa capital mineira, aglomeraram-se oito militares, formando um círculo, dentre eles eu. Uns tomavam café, outros fumavam, alguns contavam piadas, uma panacéia só. Todos faziam tudo menos a continência obrigatória para os superiores (Sargentos, tenentes, capitães) que por ali passavam.

Inesperadamente, um outro soldado que não fazia parte do displicente grupo, aproximou-se de nós com cara de assustado e com quase um palmo de língua para fora disse: “Aquele sargento ali está chamando vocês!”.

A essa altura do campeonato os despercebidos militares, mesmo não sabendo do que se tratava, já molhavam as calças. Atravessavam correndo o pátio, cheio de poças d´água, para atender o chamado do superior. Manhã chuvosa tinha sido aquela.

Fomos até o sargento. Este graduado tinha mais ou menos dois metros e vinte e sete centímetros de altura, avaliando por baixo. O homem era alto e tinha olhos vermelhos, parecia o gorutubano, só que era bastante branco. Ele olhou fixamente para nós e com a raiva de um cão que está acometido por essa moléstia, começou ler a bula:

_ O que vocês são? Coronéis? Tenentes-coronéis? São Majores....?

Passou por mais de vinte postos e graduações até chegar ao que realmente éramos: soldados.

Aí percebemos que tínhamos feito algo de errado. Ou deixado de fazer o certo pelo ao menos.

Ele continuou ainda mais nervoso:

_Por acaso vocês estão dispensados de prestar a continência?

De tão nervoso que ele estava nem ousamos responder a seus questionamentos e, pensando bem, acho que foi o melhor que fizemos.

A força de sua voz e a força de nossas pernas era inversamente proporcionais, quanto mais alto ele falava, mais fracos nossos membros inferiores ficavam. Nunca na minha vida havia visto uma pessoa tão nervosa. Só parava de esbravejar para respirar um pouco, puxava o ar e começava tudo de novo:

_ Que falta de compromisso com a instituição! Que desrespeito! Passaram mais de duzentos e trinta e nove superiores por vocês e para nenhum, nem mesmo, uma única vez, algum de vocês prestou a continência regulamentar. Vocês acham isso correto?

Pensei que duzentos e trinta e nove seria um número um pouco elevado e exato demais, no entanto eu estava bem mais preocupado em me defender das gotículas de cuspe que voava da boca dele em minha direção, do que com cifras matemáticas. Como estávamos na posição de sentido, e nesta posição não se pode mexer, me limitava apenas a fechar os olhos quando observava a gotinha vindo ao encontro do meu rosto. Abaixava uma pálpebra por vez para ela não pensar que eu estava dormindo. Quando vinham duas gotas, o jeito era escolher qual olho seria o premiado, e rezar para o respingo não cair na boca.

Num momento ele parou e com aquele olhar penetrante, concentrou num dos nossos colegas e com voz ainda mais alta, soltou:

_ E você? Foi você! Você mesmo!

O menino, que já era branco, ficou amarelo. Suas calças tremiam seguindo o ritmo das pernas.

_ Inclusive você! – Falava o sargento espumando a boca.

Quando o sargento levantou o dedão e cutucou o peito do pobre PM, o menino começou a virar o olho. Tadinho, não agüentou a pressão. O sangue da cabeça fugiu para os pés e o líquido da bexiga acompanhou, só que vazou antes de chegar aos pés. Eu, de relance, olhava aquilo e pensava: “Agora ele desmaia”. Do lado dele, fiquei sem saber se cometia outra infração disciplinar saindo da posição de sentido sem a devida autorização, para tentar acudi-lo ou o deixava cair e rachar a cabeça no chão.

Na mente de nosso amigo possivelmente passava o seguinte questionamento: “O que fiz para esse homem ficar com tanta raiva de mim?”.

O Sargento (sem exageros) ficou por cinqüenta e três minutos e dezoito segundos, apontando o dedo no peito do pracinha e berrando:

_ Pois foi você. É você... – E o polícia balançava para frente e para trás, igual João-bobo murcho. Pernas tremendo, olhos revirando, esta era a imagem de um homem sendo duramente repreendido.

Na minha avaliação ele no mínimo, além de deixar de prestar a continência, havia falado mal da mãe do Sargento, e este sargento, apesar de não parecer, também devia gostar da pessoa que o pôs no mundo.

O superior completou seu raciocínio e finalizou:

_ Você! É você mesmo. Você foi o único que prestou a continência. Parabéns! Que você sirva de exemplo para os demais.

Aí já não tinha mais jeito, o desmaio era irreversível, o soldado mesmo elogiado, despencou desfalecido no chão.



terça-feira, 5 de abril de 2011

16. Fodinha

Fomos até aquele mesmo povoado cheio de problemas como sempre. Desta vez tínhamos uma ocorrência ainda mais complicada para ser solucionada, envolvendo a Dona Geralda, sua filha e um espírito que assombrava as duas. Mesmo sem acreditar muito em espíritos chamamos um pastor só para garantir.

O religioso era, como deve de ser até hoje, um homem muito recatado e carregado de boa energia espiritual.

Chegamos à casa da Dona Geralda. Ela nos contou que sempre ouve uma voz, parecida com a do falecido marido dela, convidando-a para partir para o além: “Eu vim te buscar, vamos comigo”.

_Parece meu marido, mas eu tenho certeza que não é. Se fosse ele eu ia, mas não é.

Seu medo na realidade, não era da morte, do espírito, ou de coisas do além, ela tinha medo de ir para um lugar errado com a pessoa errada. Não bastasse a quantidade de fraudes que já existem ainda me aparece mais esta - fraude espiritual - é o fim dos tempos mesmo.

Por mais que a entidade espiritual insistisse, ela nunca aceitou o convite, pelo contrário, tomou a corajosa atitude de chamar a polícia para solucionar a questão. Dona Geralda pensava que nós iríamos prender a alma do defunto, só pode! O que mais ela poderia pretender solicitando o auxílio da polícia.

Nossa arma naquele dia deixaria de ser o revolver para se tornar as orações e, possivelmente, quem comandaria a operação não seria mais o sargento e sim, o pastor.

Demos as mãos formando um círculo, seguindo as orientações do religioso. A filha da Dona Geralda, que também ouvia o chamado daquele espírito fajuto que tentava se passar por seu pai, segurou no meu braço. Apesar de eu ter oferecido a mão, ela preferiu segurar com firmeza exagerada no meu punho.

Começamos a orar, quando vi que começou a sair lágrimas dos olhos da moça eu fechei o meu. A cada palavra do pastor ela derrama lágrimas e apertava mais o meu braço. Eu, sem perceber, espremia a mão do religioso trazendo conseqüências para sua voz, deixando-a cada vez mais fina. Num dado momento, o pastor disse: “Vamos orar só com o coração agora!”. Quando todos se calaram, a menina folgou um pouco o meu braço, mas foi só recomeçar as orações em voz alta para ela me espremer novamente.

O aperto havia cortado o fornecimento de sangue para os dedos e minha mão ficou branca e formigante, mesmo assim eu não me senti encorajado o bastante para abrir os olhos.

Percebi que a moça começava a tremer e a balançar freneticamente meu braço. Resolvi olhar o que se passava. Pela fresta de, no máximo, um milímetro que pude produzir entre minha pálpebra superior e a inferior consegui ver a menina girar a cabeça numa velocidade alucinante. Ela abria e fechada os olhos umas duzentas vezes por segundo, piscar era o que eu estava tentando há mais de dez minutos e não conseguia e ela fazia com impressionamte facilidade..

Quanto mais ela movia a cabeça, mais alto o pastor orava, mais forte ela apertava meu punho e mais próximo de um desmaio eu ficava. Minha mão estava desfalecida, mesmo assim não tentei puxar o braço, preferi não arriscar, vai que aquele 'trem' cisma de encarnar em mim, fiquei quieto.

A Dona Geralda tremia no mesmo ritmo. Nunca tinha visto nada parecido. Senti um pouco de medo, um pouquinho só, mas minha fé cristã inabalável enxertou coragem nos meus membros inferiores e me manteve de pé, está certo que o fato de eu estar escorado na parede ajudava e muito em minha sustentação.

Quinze ou vinte minutos depois do início dos trabalhos e após o espírito ter se manifestado em quase todo mundo exceto em mim. Apressei em irmos embora, nunca mais voltaríamos àquela casa, até porque ali não necessitava de serviço policial algum, precisa sim de serviço de ordem espiritual, e nestes casos eu não me meteria mais.

Embarcarmos na viatura. No exato instante que íamos deixar o local uma gata de pelagem negra atravessou na frente do veículo e não se prontificou a sair de lá de modo algum. Eu acelerava, buzinava, gritava e nada. De macha ré era difícil partir devido aos buracos na rua. Á frente e avante era a única possibilidade de fuga, mas a gata preta insistia em permanecer ali, parada, olhando para nós, com os pelos das costas todo arrepiados. Ela emitia aquele som agudo e rasgado, característico de felinos acuados. Meu companheiro até deu uma sugestão: “Sargento se quiser eu mato esta praga”.

Eu achei melhor não, matar a bichana para quê?

Para o pastor aquela cena não lhe causava estranheza, estava acostumado:

_É a manifestação do mal, que ficou ofendido com a nossa visita. O mal se manifesta até nos animais inferiores quando está furioso.

O mal já não é bom de natureza, imaginem quando está furioso. Já que ali na nossa frente estava o mal e não uma pobre gatinha, mudei radicalmente de idéia.

_Então mata, mata logo, mata essa praga!

Agora sabendo que o que estava ali não era mais uma simples gatinha e sim o mal, meu patrulheiro, aquele mesmo que a dez segundos ofereceu-se para sacrificar a bichana, respondeu:

_Agora eu não mato mais não, mato não.

Mesmo sem saber muito bem o que era o mal ele resolveu não arriscar, repensou sua intenção e teve a brilhante idéia de chamar a Dona da casa para tirar aquele bicho dali. A Dona Geralda quando viu que o animal estava obstruindo nossa passagem e atrasando nossa viagem, lá da janela, ainda um pouco tonta por conta do exorcismo que havia sofrido, gritou:

_Sai de baixo do carro Fodinha. Sai Fodinha!

O pastor, que até então passara ileso por todos aqueles contratempos, desta vez ficou branco. O nome da gata o deixou sem fôlego e com a mão no peito pronunciou bem alto:

_Tá amarrado em nome do senhor Jesus! Misericórdia.

Por mais que Dona Geralda gritasse a “Fodinha” não saia da frente da viatura.

_Entra pra dentro Fodinha! Sai do meio da rua Fodinha. – Ela continuava.

O pastor orava e passava mal simultaneamente.

Curioso, perguntei para a Dona porque o nome da gata era aquele. Ela explicou que o nome foi herdado da mãe dela (da gata). “A mãe se chamava fada então ela é a fadinha”.

A dona Geralda tinha um problema na língua, só depois de falar bem devagar o nome da bichana pôde ser perfeitamente entendido. Era Fadinha, diminutivo de fada. Ainda bem que foi desfeito o mal entendido em tempo hábil, se ela pronunciasse o nome da gata novamente, como foi pronunciado da primeira vez, eu penso que o pastor não suportaria.

terça-feira, 8 de março de 2011

15. O apelido

       O rapaz estava nervoso, muito nervoso mesmo, mal conseguia articular as palavras. Era um rapaz da zona rural, aparentava ter um leve distúrbio psicológico. Ele se queixava que alguns moradores do povoado do qual era oriundo, estava apelidando-o.
       O cabo que primeiro o recebeu no quartel, com muita dificuldade, conseguia entender o que ele dizia, tal era o estado de ansiedade do rapaz. Estava anormalmente transtornado com seus vizinhos:
       _Eu vou matar eles tudo, se eles me chamar de apelido eu mato, vou matar mesmo, se vocês quiser pode mim prender, mas se me chamar de apelido de novo eu arranco o pescoço de um por um.
       _Calma rapaz que isso? Nós vamos resolver seu problema.
       Um pouco mais calmo o jovem contou que após ter ido para uma festa acompanhado de seus amigos, todos tomaram muita cerveja, no retorno para casa resolveram aliviar a bexiga num pé de umbu, daí para cá começaram a chamá-lo de...
       Ele só contava até esta parte e parava, não dizia qual era o apelido. O militar insistia:
       _Te chamavam de quê?
       _ É um nome muito feio.
       _Qual é o nome?
       _É palavrão!
       _Meu amigo, se você não disser fica impossível de registrar a ocorrência.
       O militar insistentemente perguntava qual era o apelido. O registro da ocorrência já não era o mais importante, a firme negativa do rapaz aguçou a curiosidade do militar de tal forma que queria saber de qualquer modo qual era o nome que os amigos da vítima colocaram nele.
       _Fala rapaz!
       _Deixa quieto. Pode deixar que eu resolvo. Vou embora.
       _Não! Agora você tem que falar de qualquer jeito!
       Os sentimentos se inverteram e o militar já estava mais nervoso que o garoto. O PM agarrou o braço do rapaz e sacudindo bem forte, ordenava:
       _ Fala rapaz, anda, fala logo, fala! Qual é o apelido?
       A curiosidade do militar era muita e deixou o jovem assustado, por isso o rapaz deu um puxão no braço, desvencilhou se do agarrão cabo e saiu correndo para fora do quartel. Lá do meio da rua, verificando que o PM não o seguiu, gritou bem alto:
       _ O apelido é “pinto de passarinho” filho duma égua! - E desapareceu.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

14. Uma festa inesquecível - A hora da Verdade (continuação da 8)

Anos após o ocorrido o polícia contou-me o que de fato aconteceu naquele banheiro.
Segundo ele, só depois de ter arrancado o cara de dentro do mictório percebeu o motivo daquele cidadão estar lavando as mãos com a porta aberta. Por lá não havia trinco. Ou você lavava as mãos com a porta aberta ou ficava lá dentro segurando a porta, fingindo que estava lavando, depois saía enxugando as mãos nas calças.
Como lavar as mãos é um ato rotineiro que não dispensa tanto sigilo e privacidade pode se fazer de portas arreganhadas, porém o que ele (nosso desarranjado militar) queria fazer lá dentro, de forma alguma poderia ser exposto, não ali, numa festa de casamento.
Lembro que entrou como uma bala no banheiro, os fatos seguintes deram se na seguinte ordem: prostrou-se rapidamente em cima do trono, vulgarmente conhecido como vaso e esticou-se todo. O vaso era um pouco longe da porta, então ele sentou, esticou a perna direita e segurou a porta com o pé. As mãos se revezavam, enquanto uma apertava a barriga, a outra segurava a vasilha colocada ali, especialmente, para aparar as incessantes gotas que pingavam da caixinha da descarga na cabeça de quem assentar no sanitário.
O banheiro era daqueles antigos, diferente dos atuais no qual a água do vaso vem da encanação embutida, naquele banheiro a caixinha com água fica posicionada acima da cabeça do usuário, com uma cordinha dependurada para a descarga. 
Como a porta não tinha trinco, esticou a perna direita e a segurou para evitar que alguém a abrisse.  Para a perna esquerda, restou a incumbência de sustentar o corpo sobre a frágil louça. Nem teve tempo de cientificar se o vaso estava seco ou comprometedoramente molhado, apenas e sem muita cerimônia desabou em cima dele e se abriu como uma estrela do mar para segurar a porta, apertar a barriga, sustentar o corpo e aparar as gotículas.
Para agravar um pouco mais a situação do nobre colega, aquele era o único banheiro da casa, e em dia de festa com a comida na gordura que estava, imagine o tamanho da fila que se formou lá fora. Começaram a aglomerar algumas pessoas por ali, alguns outros já forçavam a porta com o objetivo de abri-la, nem imaginavam que lá dentro havia um intrépido varão, miliciano da instituição Tiradentes, membro da força auxiliar do Exército Brasileiro em extrema dificuldade.
Eu observava o povo se ajuntando, mas como só fiquei sabendo do problema enfrentado por ele lá dentro, no dia de hoje, nada fiz para impedir e deixei o povo empurrar a porta. O que me causou um pouco de estranheza foi o fato de o colega ter ficado vinte e sete minutos trancafiado lá, fora isto para mim estava tudo normal.
Ele gritava do interior do banheiro: "Tem gente, tem gente!" - Só que o alto som gerado pela parafernália instrumental dos músicos impedia que o pessoal ouvisse sua voz. Até que ele se viu obrigado a dar uma paradinha forçada na sua odisséia, enfiar a cara toda suada e vermelha na fresta entre a  porta e a parede e pedir que aguardassem mais um pouco, porque o bicho 'tava' pegando. Que o bicho estava pegando ele não falou não, é por minha conta mesmo.
Quando o polícia abriu a porta, no momento que foi pedir calma para os que forçavam a entrada, sem solicitar licença alguma, saiu de lá de dentro do banheiro, o subproduto gasoso daquilo que ele estava fabricando. A diferença de pressão forçou o ar que estava saturado e carregado no interior do banheiro a sair e atingir de frente os que estavam no lado de fora. Até hoje, acho que aquela foi a jogada mais genial que meu colega realizou em toda sua carreira: sem proferir uma única palavra, espantou todos que estavam na porta do banheiro, nem precisou gastar saliva.
Finalizado o serviço e já fisicamente recomposto foi tentar finalizar com chaves de ouro, a epopéia. Para se livrar da cria que acabara de parir, puxou a cordinha da descarga com a intenção de mandar para outra dimensão o fruto de seu árduo trabalho. Puxou, puxou e nada daquilo ir embora. As gotículas que encheram a vasilha fizeram falta agora, tinha pouca água na caixinha para conduzir o produto para baixo. E agora a caixinha estava toda vazia. E vazia mesmo só estava a caixinha, pois a louça estava cheia e bem cheia mesmo.
O praça velho, engenhosamente, ficou de frente para o vaso, segurou a mangueirinha do chuveiro lá em cima na abertura da caixinha da descarga para enchê-la mais rápido, tapou com o dedo da outra mão o buraco que deixava a água escapar da caixa e de forma nada anatômica, lançou a perna para trás para segurar a porta. Uma mão na mangueira, outra no buraquinho, um pé na porta e a perna direita desta vez sustentava o corpo no chão.
Quando a caixinha encheu, ele abaixou o olhar, encarou a cria, abriu um sorriso zangado e por entre os dentes murmurou: "Agora vamos ver porque você não desce" - E puxou novamente a cordinha. O negócio rodopiava, rodopiava, ele acompanhava com os olhos, chegou até a ficar tonto, mas o produto não foi, não desceu, contrariando mais uma vez a vontade do próprio dono. Parecia que ele – o polícia – tinha comido isopor.
O treco era bem menos denso que a água, assim, insistentemente não afundava. O nobre colega não cogitava a possibilidade de encher a caixinha para uma terceira tentativa, tinha perdido muito tempo nas primeiras e as pernas já estavam doendo.
Teve então, a brilhante idéia de entreabrir a porta, para a segunda leva de escape de ar espantar os futuros usuários do banheiro, fechar a tampa do vaso e sair rapidamente.
Foi o que fez, abandou o fruto de si e fugiu sem olhar para trás.
Depois de tudo passado eu disse a ele que não carecia ser tão detalhista no relato do fato, só que ele insistia em me contar minúcias da triste aventura. Ainda por cima, levantava a bermuda e mostrava a perna direita, afirmando ser ela mais grossa que a esquerda pela força que colocou em segurar a porta naquele dia.
 Hoje entendo o motivo de tanta pressa em deixar a comemoração e ir direto pra casa. Quem deve ter sofrido foram os donos da residência, com um banheiro com o ar todo contaminado. Bem feito, também, quem mandou não usar óleo vegetal para fazer a comida!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

13. Banheiro Portátil

Quando chegamos ao local do ocorrido, deparamos com o cidadão como numa cena de filme do Rambo: com uma peixeira na mão e um facão na outra, urrava como se estivesse possesso por um espírito de porco do mato. No momento em que a viatura se aproximou, o espírito abandonou aquele corpo, levando consigo a valentia do fulano, e o que se viu foi um facão voar para um lado da rua e a faca para o outro.
A abordagem foi vigorosa. Diante da tentativa frustrada de fuga, nos o agarramos firmemente e o colocamos de bruços em cima do capô da viatura para procedermos à uma busca pessoal. Ao correr as mãos pelas vestes do valentão, aprontamos uma frenética lista de questionamentos que o desorientou:
_ Quer ir para cadeia?
_ Para que você quer isso (referindo as armas)?
_ Era para matar alguém?
_ Tem mais armas aí?
Antes de responder uma, já lançávamos outra pergunta no intuito de dispersar seus pensamentos. Toda a ação, contando da abordagem, mais a desabalada “perguntação” e a busca pessoal, não durou mais que trinta segundos, foi tudo muito rápido. Esta era a intenção, evitar que ele tivesse oportunidade de pensar em tentar reagir. Porém, mesmo neste curto espaço de tempo, o inesperado pôde ocorrer.
O militar que procedia a busca - que no caso não era eu - passou, repentinamente das perguntas  para o esbravejo. Sem motivo aparente algum, começou a ser rude com o abordado, proferindo-lhe palavras asperas. O outro militar que fazia a segurança (este sim era eu) nada entendia. O que haveria levado o colega ter uma mudança tão brusca de comportamento. Passar do vigoroso para o rude num nervossismo nunca antes visto. Essa dúvida levou o que estava na segurança a questionar o colega:
_ Que foi? Tá ficando doido?
O militar exaltado, sem saber se respondeia ou continuava a xingar, ergueu o braço com a mão espalmada e dedos abertos em direção ao colega e enquanto segurava o abordado pelo colarinho disse:
            _ Esse cara urinou na minha mão.
            Uma frase um tanto quanto esquisita de se ouvir, principalmente, para quem não está por dentro da situação. Imagine você, dentro de sua casa; assistindo o programa Silvio Santos e ouve lá da rua: “Ele mijou em minha mão”. Certamente não pensaria que o fato aconteceu em decorrência de uma busca pessoal, em que o policial se ver obrigado a correr a mão nas vestes do suspeito, até mesmo, em locais bem próximos a partes muito íntimas do corpo. É o famoso osso do ofício.
Mas não pensem que ele tocou onde estão vislumbrando. Apalpou a parte interna da coxa; é que o líquido, seguindo a escalada do medo que o homem sentia, era tão abundante que escorreu perna abaixo.
O militar menos prejudicado nesta história (no caso, eu) por mais que tentasse não conseguia parar de rir, foi o dueto mais estranho e sem sinfonia já visto: um maldizendo e o outro rindo.
O mais prejudicado arrumou um saco plástico velho no chão, forrou o banco da viatura, enfiou o preso lá dentro, colocou cento e vinte na estradinha de terra e só parou na delegacia. Lá,  com semblante sério, disse ao delegado: _ Doutor, deixa esse cara preso aí pra nós no mínimo uns oitenta anos! Tem jeito?
O delegado sorriu, entrou para sala dele com o autor e, de lá de dentro, só se ouvia altas gargalhadas. Sei não, me parece que o camarada não se contentou apenas em urinar na mão do polícia e teve, além de tudo, que espalhar o caso para todo mundo. Ainda bem que depois de solto, com bem menos de oitenta anos por sinal, mudou-se para outra cidade, pois o polícia queria vingança. Não sei se ia urinar na mão do ex-preso, mas que ele queria vingar ah, isso ele queria com todas suas forças.
Foi um dia para se apagar da memória, inclusive peço para que quando terminarem de ler este texto, arranque esta página, embebeda-a em álcool e ponha fogo, para que não exista nenhum registro acerca do fato. É que ele me pediu segredo e eu, fiel que sou, estou cumprindo com o prometido.