quarta-feira, 20 de outubro de 2010

12. Prova de revezamento

        
A única diversão que possuia o militar naquela cidadezinha era os inconstantes namoricos que arranjava. Consta que, por força da escassez de recursos, esses namoricos eram bem raros e de qualidade bastante duvidosa.
Numa dessas empreitadas amorosas o militar arrumou uma namoradinha que mexeu muito com ele, não sei onde e como, mas que mexeu, mexeu; tanto é que o PM terminou o relacionamento com todas as outras. O que foi que ela fez ninguém sabe, apesar de ser presumível, porém o que ele, o PM, fez para ela terminar o namoro, todos da cidade ficaram sabendo.  
O pracinha, na sua vã inocência, acreditou que a garota entenderia o caráter puramente profissional da prisão do pai dela, efetuada por ele, por causa de uma pinga tomada num boteco e deixada na conta do Abreu, aquele mesmo Abreu sujeito do ditado: “se ele não pagar nem eu”.
A imparcialidade falou mais alto naquela sua ação. Prendeu o pai da própria namorada e ainda gritou para todos que quisessem ouvir:
_ Tá pensando o quê? É meu sogro, mas vai preso do mesmo jeito!
Depois do término do namoro o militar tentou se redimir deixando sua motocicleta à disposição do (ex)sogro para que pudesse ir trabalhar na sua rocinha a cinqüenta quilômetros da cidade. Usou todos os artifícios possíveis na tentativa de retomar o amor da moça, todavia ela se mostrava irredutível.
O pai da moça, por sua vez, estava doido pra voltar a ser sogro do respeitado soldado de polícia, por essa razão, aceitou a “motinha” e ainda levou dois litros de cachaça de brinde.
Coincidentemente e logo no primeiro dia da ida do velho pra roça, o PM organizou um ninho de amor em sua casa e, como uma última tentativa de reaver o coração da agora ex-namorada, a convidou para acompanhá-lo até lá.
A mocinha era tímida, de família humilde e respeitosa, apesar da cachaçada do pai. Vivia ainda nos moldes das donzelas do início do século. O polícia desconsiderou todas essas variáveis e, sem medo de levar o nonagésimo oitavo “não” da semana, resolveu arriscar: _“Vambora” lá em casa! Tenho de falar uma coisa contigo!
A menina, mesmo relutante, aceitou, afinal o coraçãozinho já estava pedindo a volta do namoro.
Antes de entrar o soldado deu uma olhadinha rápida para a rua para certificar que ninguém havia visto sua recatada namorada adentrar na cena do crime. Nesta olhada percebeu algo que o causou preocupação e o fez acelerar a entrada na casa. Fechou rapidamente a porta e as cortinas. A menina questionou qual era o motivo de tanto segredo já que, como ele próprio havia prometido, iam só conversar e ordenou a ele que abrisse a porta, pois ela não gostava daquele tipo de coisa. O polícia, utilizando-se de sua labiosa retórica, convenceu a garota explicando que o repentino enclausuramento era para abrilhantar ainda mais a surpresa que tinha preparado para ela. A bobinha acreditou e ficou quieta.
Fugindo ao antigo costume, forrou o velho colchonete no chão da cozinha, lá no fundo da casa. Geralmente ficavam deitados assistindo TV na sala, bem próximo a rua. A moça estranhou também esta mudança, só que ele insistiu na idéia furada da surpresa e ela o seguiu até lá.
Deitados no último cômodo da casa, com portas e janelas fechadas, luzes todas apagadas, iniciou-se a choradeira. Disse que tinha se arrependido de prender o pai dela tão somente por causa de uma cachacinha de nada, que estava sofrendo demais com a falta dela, que tinha chorado muito, que tinha perdido mais de dez quilos.
De repente, no meio daquela mentirada toda, eles ouviram alguém bater à porta. O polícia, demonstrando relativa tranqüilidade falou:
_Fica quietinha! Deve ser algum cachaceiro. (sem querer fazer alusão ao pai da moça.)
 O toc-toc continuava e os dois ficaram calados esperando o suposto intruso ir embora.
Para infelicidade do PM, não era intruso e sim uma intrusa, pois se ouvia uma voz, ao mesmo tempo brava e fina, dizer:
_ Abre logo! Eu sei que você está aí dentro seu cachorro.
O soldado gelou. A namoradinha, de um salto, levantou do colchonetezinho rasgado e voou no interruptor para acender a luz, o polícia rapidamente a segurou.
_Calma bem! Deve ser alguém que enganou de casa. – Explicou ele. _Fica quietinha, faz barulho não!
Os berros continuaram lá fora e agora, o tom de voz subia também dentro da casa:
_ Nem bem terminamos você já arrumou outra! Seu cachorro. Eu sabia!
_Fala baixo meu cheiro! Eu nem sei quem está lá fora. Não é comigo não.
Ele tentava de todo modo convencer a de dentro que não conhecia a que estava lá fora, e a de fora, de que não havia ninguém lá dentro. 
Contou da prisão do pai, da falta que sentiu da namorada, das lágrimas de crocodilo derramadas, só esqueceu de contar o minúsculo detalhe de que, nesse meio tempo, tinha arrumado outra.
 A atmosfera ficou carregada e por entre os berros da que estava lá dentro, só se ouvia os desesperados pedidos de silêncio do rapaz: _ Psiu, psiu! Calma minha princesinha!
_ Você ta pensando o quê? Não sou dessas não. Abra a porta que eu quero ir embora!
A cada frase, a agora novamente ex-namorada elevava o tom de voz a níveis quase audíveis para quem estivesse batendo à porta.
Vendo que a coisa estava ficando russa, o soldado teve a brilhante idéia de fingir que estava passando mal. Intentava dispersar a atenção da de dentro, até que a de fora fosse embora.
Caiu no chão, colocou a língua cascuda e rosada para fora e começou a se debater. Até babar, ele babou. A possibilidade de perder as duas namoradas que ele mais gostava no mesmo dia fez com que produzisse uma espuma branca na boca, como se fosse um cachorro louco. Para coroar sua encenação, executou uma extraordinária manobra com os olhos, girando o globo ocular para trás, expondo somente a parte branca. Aquele bichão tremendo, babando, com o olho todo revirado, parecia que um caboclo tinha encarnado nele.
A garota observou a cena e com a educação que é peculiar a uma mulher numa situação daquela, disse: _Tomara que morra! – E saiu acendendo todas as luzes no percurso até a porta.
Ele desvirou um olho e pode verificar que na menina dos olhos sim, ele conseguiu dar uma volta, porém na menina do velho bêbado, não. Com as costas da mão limpou a baba, correu para a porta e ainda pôde ver a que estava dentro, sair chorando e a que estava fora, entrar xingando.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

11. Davi e Golias


            Na cidade em que trabalho existe uma região chamada de Gorutuba. Lá residem vários descendentes quilombolas escravos. Essa descendência exprime aos moradores daquele lugar um biótipo másculo, forte, alto  A média de altura dos homens chega a beirar um metro e noventa e cinco centímetros, isto a média, logicamente há aqueles que ultrapassam e muito essa medida.
Não bastassem as características da herança genética, aquela população vive única e exclusivamente do trabalho braçal, torneando e definindo ainda mais os braços dos gorutubanos.
Os nomes desta família gramatical - gorutubano, Gorutuba – fazem despertar sentimentos diversos nos fisicamente menos favorecidos, o principal deles, o medo, pois, além do corpo atlético e musculoso, o povo daquela região traz incutido um histórico de situações violentas desencadeada quase sempre por motivos fúteis.
            Há o exemplo do cidadão que matou um vizinho com vários golpes de facão por causa de uma cachaça. Houve aquele um que ceifou a vida de um senhor idoso por discussão acerca de um rádio velho. Por estas e tantas outras histórias que seguem a mesma linha de ação, criou-se um mito de que os gorutubanos são pessoas ríspidas, bravas e de “pavio muito curto”.
            Sabemos que a minoria desse povo está imbuída nestes fatos delituosos. A maior parte deles é composta de pessoas boas, amigas e muito hospitaleiras. É muito agradável ter contato com a gente de lá. Há de se convir porém que se encontrar um gorutubano bravo, saia da reta, pelo ao menos é o que dizem os moradores alheios àquela região.
           Tive uma experiência um tanto embaraçosa eu diria, com um dos moradores daquele local.
Naquele dia eu passeava tranquilamente, sem farda, pela cidade. Uma mulher chorosa interceptou-me e, muito nervosa, relatou o seguinte:
            _ Seu policial! Um homem veio até meu comércio, cobrei uma conta antiga dele e ele simplesmente começou a me desacatar, me xingar “disso e daquilo”. – O disso e daquilo ela me disse bem quais expressões foram só que acho que não convêm abaixar tanto o calão das palavras postas no texto, então desconsideremos. - Continuou: _Depois ainda pegou um chapéu da loja, pôs na cabeça e saiu.
            Tão logo tomei conhecimento dos fatos, providenciei para que a metade do efetivo policial da cidade (somos o total de dois militares, faça os cálculos e descubra "quantos é” a metade desse efetivo) atendesse a injuriosa ocorrência.
            A dona do estabelecimento, mal acabara de contar o caso, viu o cidadão e me mostrou.
            _Olha ele lá. Afirmava apontando vigorosamente o dedo indicador na direção do homem.
            Virei-me subitamente e num rápido golpe de vista percebi o tal fulano descendo a rua. Devido ao rápido movimento que fiz com a cabeça, por um instante, pensei ter ficado com um pouco de confusão, mental, já que para mim não era uma pessoa que descia a via e sim um guarda-roupa duplex com polimento e tudo, tamanha era as medidas daquele senhor.
            Perguntei um tanto esmorecido:
            _ A senhora tem certeza que é aquele mesmo? Não julgueis para não serdes julgado. Tá na bíblia lembra dona?
            _ É ele mesmo, eu tenho certeza. – Reafirmou categoricamente.
            Imaginem aquele gorutubano de um metro e noventa e cinco de altura que citei anteriormente. Conceda-lhe mais uns vinte centímetros e some trinta ou quarenta quilos a mais sobre seus noventa de peso bruto. Fez a conta? Agora acelere esse resultado, e pode acelerar com força  mesmo para encontrar as medidas do gigantesco moço.
            Eu sabia que existia homem grande, mas daquele tamanho nem mesmo em filmes. Aliás, vocês se lembram do Incrível Hulk dos cinemas? O verdão seria um filhote perto dele.
            Parcialmente destemido aproximei, (não muito perto é lógico), e com toda cautela do mundo (prestem atenção, não é medo é cautela) parei minha “motinha 125” do outro lado da rua e o encarei. Percebi em seus olhos, que de natureza já são vermelhos, um forte ar de embriaguez. Disse a ele então com bastante vigor:
            _ Ô cidadão! Sobe lá no quartel que eu quero falar contigo!               
            _ Quem é você? – Perguntou-me com cara de desagrado.
            _ Sou policial. Que pergunta besta é esta? Sobe lá logo!         
            Comecei relativamente bem, afinal ele acatou minha ordem e começou a ascender à rua.
            Aproveitando esse espaço de tempo, até a chegada dele ao quartel, corri e fui chamar o sargento. Não por temor, todos sabem que é o procedimento normal dar ciência ao superior de fato que foge a normalidade - se alguém afirmar que uma pessoa naquelas proporções é normal, eu tenho de rever meus conceitos urgentemente.
            Não encontrei o chefe e o dito cujo já estava na porta do quartel. Agora tinha de tomar as providências sozinho. Era Davi contra Golias, mas mesmo assim fui.
Chegando a sede do destacamento, parei minha motocicleta meio longe dele, passei o pé umas três vezes para encontrar o pedal do descanso, desci com pernas mais ou menos firmes, “três-oitão” cheio de bala na cintura, abri o portão e entramos. Vou ser sincero, minha primeira intenção era colocá-lo na grade, enfiá-lo no calabouço, só que, quando passei ao seu lado para abrir a porta do quartel, olhei para cima e mudei completamente de opinião. Não me interpretem mal, é que hoje a polícia prega a interação com a sociedade, policial amigo do cidadão, tem um tal de polícia comunitária, direitos humanos... sendo assim e pensando unicamente nesses preceitos, resolvi só adverti-lo.
Agora que estávamos demasiadamente próximos, falei com um tom um pouco mais brando do que quando estava do outro lado da rua, em cima da moto funcionando e apontada sentido descendente da via. Expressei-me em voz baixa, porque imaginei que ele certamente não era surdo: tinha cada lapa de orelha. Prossegui no diálogo:
            _ Que aconteceu lá em dona Erundina meu irmão? - Perguntei para ele.
            Antes mesmo de proferir qualquer palavra, o “bichão” olhou fixamente para mim, sentou, cruzou os braços e, quando fez esse último movimento, menino de Deus! Levantaram duas batatas de bíceps que me obrigaram a afastar sorrateiramente em direção a porta e segurar no cabo do revolver. Seus braços dobraram de espessura naquela posição.
             Eu, no auge dos meus um metro e sessenta e cinco de altura, nem cogitava a possibilidade de segurar aquele bicho na unha, caso ele encrespasse. Com o bastão de madeira eu já tinha feito uns testes dias antes: bati com bastante força num bloco de cimento e só na quinta vez o bloco foi danificado. Fiz uma breve e mental analogia entre o cimento e o gorutubano, previ que: se o bloco danificou na quinta pancada, para machucá-lo seria da oitava para lá, então, de cara descartei essa possibilidade de defesa. Além do que, o bloco de cimento não esboçou nenhuma reação ao receber as pancadas e ele, muito provavelmente, não ficaria tão quietinho.
                Bêbado que estava, abaixou a cabeça e começou a fungar profundamente. Parecia um touro preparando para atacar o toureiro. Cada fungada que ele dava, eu rezava três Pai Nossos e duas Aves Maria, por pura precaução, é que eu também, como as pessoas normais, costumo rezar. Tá certo que antecipei o horário das orações de meia noite para duas da tarde, tudo culpa do meu relógio que estava desregulado naquele dia.
Eu olhava de relance para a porta de saída do quartel e já marcava o meio da rua, não era para correr de medo, isso nunca! Eu apenas achava que ele estava entrando num colapso nervoso e talvez precisasse de um médico, nesse caso eu sairia correndo sim. Somente neste caso.
             Para acalmar aqueles que estão com medo só de ler esse texto, devo lembrar que o cidadão sentiu a firmeza no tratamento que dispensei a ele. Eu, sozinho fiz com que seu fungado se transformasse em soluço, e o soluço, em choro, choro de uma criança que tem seu doce roubado. Com olhos cheios d´água disse para mim:
            _ Ô seu “pulicial”; eu não queria fazer aquilo não. Me desculpe, é que tomei umas duas e...
            Diante da fra(n)queza do moço, eu cresci, ora se não! Ajeitei a calça, tirei a mão do revolver, retornei para o interior do quartel e bravamente falei:
            _Ó rapaz, eu não quero saber de bagunça na minha cidade! Se eu te pegar de novo vai se ver comigo, só não vou te prender hoje por que... Aquela ladainha que todo mundo conhece bem.
            O gorutubano desculpou-se, voltou ao comércio da Dona Erundina, pagou a conta e devolveu o chapéu.
            Sem levantar um dedo sequer, dominei um homem de quase três metros, será que é isso que chamam de força da mente?


domingo, 17 de outubro de 2010

10. O ladrão de ‘cueca’


            Três horas da manhã, cidadão ofegante e só de shorts acorda desesperadamente o comandante do destacamento: “Sargento, Sargento! Tem um homem roubando lá em casa”. O graduado levantou da cama e  dirigiu-se ao local da ocorrência. Pelo caminho escutou parte da história. Assim dizia a suposta vítima:
            __ Eu estava dormindo com a mulher, quando de repente acordei e vi uma pessoa no quintal de casa, levantei corri atrás dele; ele fugiu; voltou mais tarde, corri atrás dele de novo; fugiu novamente; aí vim aqui chamar o senhor.
            O militar desconfiou do relato. O que, de tão importante, havia naquele casebre para o ladrão, após "levar uma carreira" do dono da casa, voltar minutos mais tarde. Embora suspeitoso continuou o rastreamento até encontrar o ladrão. Ele estava dormindo, de cuecas, no quintal da casa de uma irmã. Irmã de pai e mãe mesmo, não irmã de caridade, não.
            Retornando ao local da ocorrência encontraram as roupas do infrator e, junto a elas, sua arma. Arma esta que foi, de imediato, apreendida. Não era uma arma pesada, era de baixo calibre na verdade, porém de veras habilitada para causar dano. Tratava-se de um estilingue, marca ‘de pau’, modelo ‘triângulo invertido’, com onze munições tipo 'brita'.   
            O meliante foi conduzido para prestar maiores esclarecimentos. Neste ínterim, a vítima tentou dá uma de investigador e ao questionar o, até então, "ladrão", alguns detalhes, importantes para o inquérito policial, surgiram.
            __ Seu filho de uma rap.......(piii). Me diga o que você estava caçando lá em casa, só de cueca, de noite, na chuva. Você estava querendo me matar era? Fala Bandido!
            __ Não era nada não cara. - Respondeu cabisbaixo o meliante.
            __ Era roubar laranja?!
            __ Não tem pé de laranja no seu quintal, cara.
            __ Meu DVD. Era meu aparelho de DVD que você queria roubar?
            __ Tem DVD em sua casa não.
            __ Seu miserável! Você tá conhecendo minha casa melhor do que eu!
 Aí o negócio ficou um tanto quanto particular, e constrangedor. A partir daquele diálogo ficou praticamente impossível acreditar na versão de furto. É bom lembrar que a mulher do ofendido não era o que se pode chamar de uma senhora das mais recatadas. De acordo com as más línguas, não poucas vezes, ela já havia ornamentado o couro cabeludo do marido. Mas isto é apenas um irrelevante pormenor que nada tem nada a ver com o caso em questão, lembrei agora, nem sei bem o por quê.
No começo de tudo o sargento até pensou que se tratava mesmo de um crime contra o patrimônio, mas de cuecas? Há é lá no quintal também não tinha pés de laranja, nem DVD na sala,  havia me esquecido desses detalhes. É que eu, diferetemente do meliante, também não conhecia bem aquela casa.
            Para não agravar a situação e tentando entender melhor o que havia de fato ocorrido o sargento separou a vítima do "furto", do saltadorzinho de muro e teve uma conversa de homem para ricardão:
            __ O que você estava fazendo lá na casa do homem rapaz, à noite, de cuecas?
            __ Ó seu puliça vou contar a verdade, o negócio é o seguinte, não é a primeira vez que eu ....
            No final da conversa as suspeitas se dissiparam e a verdade, que já suspeitava profundamente, veio à tona. Todavia, não pretendo penetrar em detalhes passionais do caso.
Sem a mínima intenção de levantar infundadas suspeitas deixo uma pergunta para os incrédulos. O que um cidadão vai fazer na casa do outro, de madrugada, só com as roupas de baixo, bem no dia em que o dono da residência costuma viajar e deixar sua esposa a mercê da própria sorte. Roubar? Furtar? É, até pode ser, não tem gente que acredita em Papai Noel e coelhinho da páscoa?
           O mais intrigante de toda essa história é que ela é constituída, em sua totalidade, de fatos verdadeiros. E o mais decepcionante disso tudo é que, ainda hoje, o mais prejudicado nessa história toda, coça a cabeça e se pergunta: O quê esse cara queria roubar lá em casa?
 Sei lá.

sábado, 16 de outubro de 2010

9. O general

Ele sempre foi fã dos nomes dados às graduações e patentes militares. Arrepiava só de escutar: capitão, tenente, coronel. Sua outra fixação era por animais, especialmente pelos cães.
Na páscoa, em vez de ganhar um ovo, ganhou um cãozinho labrador de presente. Marronzinho, das orelhas compridas, bem peludinho, uma beleza de cachorro, só faltava um nome bonito para completar o pacote.
Na sua cabeça, batizar o animal com um nome de uma patente militar, seria a coisa mais linda do mundo. Até o animal ia gostar, sobretudo, se fosse uma alta patente. Os titulares da patente, esses sim, de certo não ia gostar muito. 
Vamos combinar que não soaria nada bem, ele que é cabo de polícia, durante a visita de um sargento, se incomodar com o latido do cão e vim a expressar em voz alta: “Cale a boca Sargento!”, sendo este o nome do cão. O sargento, o homem, ficaria no mínimo com uma tremenda dúvida. “Será que esse cara está falando comigo?”.
Pior ainda seria se o dono do cachorro estivesse com raiva do superior hierárquico e notando a aproximação do chefe, berrasse, para todo mundo ouvir: _Sargento morto de fome! Vem logo comer sua ração! - A desculpa de estar falando com o animal dificilmente colaria.    
Pensando nestes possíveis erros de interpretação, que poderiam custar caro não só para o cachorro, resolveu batizar o bicho de General. Uma patente inexistente na Polícia Militar, exclusiva apenas aos oficiais do exército. A remota possibilidade de encontrar algum general genuíno pela frente o encorajou a ratificar o nome bicho.
O militar trabalhava num pequeno destacamento do interior de minas, raramente um dos seus chefes visitava a cidade, quando muito, um tenente passava para uma breve inspeção. Então, sempre que ia para o quartel, levava o próprio general. Era General pra cá, General pra lá, e ninguém se incomodava.
Em meados de outubro, de um ano em que a seca castigou mais do que é de costume, o exército brasileiro se viu obrigado a oferecer sua ajuda humanitária para as vítimas da seca na pequena cidade do cachorro General. Naqueles dias, a falta de água havia sido tão severa que o comandante da operação no norte de minas, se viu obrigado a deslocar até aquele árido município, a infeliz coincidência disso tudo residia no fato de o comandante ser um general, um general de verdade ainda por cima.
Como reza o bom costume entre as corporações militares, o comandante foi fazer uma pequena visita aos milicianos da instituição coirmã, no quartel da Polícia Militar da cidade.
O cabo, que nem mesmo sabia que o exército estava cumprindo missão em sua cidade, apesar de também sentir a falta d´água - há três dias não tomava banho –, avistou lá do interior do quartel aquela farda verde cheia de divisas e insígnias caminhar em sua direção. Esfregou bem os olhos e pensou que estava vendo miragem, daquelas típicas dos desertos escaldantes, como de fato estava o sol naqueles dias.
No interior do quartel, o cabo que estava se abanando com uma folha de papel, abanando ficou. Os botões da gandola estavam abertos até o terceiro, expondo aquele peito cheio de cabelos brancos e chamuscados pelo sol. Desabotoados também estavam os botões da parte de baixo da camisa, folgando a roupa para permitir a passagem da imensa barriga. A careca suava, suava e ele nada fazia para certificar se aquela farda caminhando em sua direção era miragem ou não. O cachorro por sua vez, choramingava incomodado com calor e para amolar os dentes roía as botas do seu dono.
O cabo, que também não sabia da presença de seu melhor amigo debaixo da mesa, despertou do cochilo quando o afiado dente do cão atingiu seu calcanhar, fazendo-o soltar um estridente grito: _ Ai, General viado! – Era costume de o graduado referir-se ao cachorro com o nome de outros animais, principalmente quando era mordido.
O general do exército, já estava quase dentro do quartel e, a essa altura, nem cogitou a possibilidade daquele xingamento não ser endereçado a ele. O homem não ficou bom não. Apressou o passo e perguntou espumando por entre os bigodes:
_ O que você disse, cabo?
As forças que o cabo havia economizado o dia todo naquela cadeira serviram para dar impulso à brusca levantada que deu. Ficou sem saber o que dizer para o superior. Achava que o general – o de divisão e não o de canil – pensaria que a história do nome do bicho era esfarrapadas desculpas. Como ele ia provar que General era o nome do cachorro se nem mesmo certidão de nascimento ele tinha.
O general começou a falar e esbravejar. O cabo, tentando desesperadamente subir o relaxado zíper da calça, ouvia tudo e se justificava ao mesmo tempo. O cachorro assistia a cena e pensando que o outro general estava brigando com seu dono, então pôr-se a latir.
O general xingava, o cabo justificava e cachorro latia.
_ Ô senhor general! General é o nome do bichim.
_ Por acaso você é louco, cabo? Como você atribui uma patente destas a um animal?
_ Foi ideia de minha mulher, eu nem queria.
O cachorrinho, sentindo a gravidade da repreensão sofrida por seu dono, avançou nas canelas do outro general, mordeu a barra da calça e começou a rosnar e dar fortes puxões com a cabeça.
O comandante, com receio dos dentes do cão alcançarem sua perna, abaixou e segurou com força o pescoço do cachorro. O general puxava de um lado, o cachorro mordia do outro, e o cabo gritava: "Solta General! Solta ele! Solta!"
O combatente largou do pescoço do cachorro, deixou que ele rasgasse sua calça, apontou o dedo em riste para o cabo e disse: "Você está preso!"
O cabo, até hoje, jura que o pedido de soltura era para o cachorro largar das calças do comandante e não estava nem um pouco preocupado se o general – o de divisão – ia ou não esgoelar seu estimado cão. 
    




sexta-feira, 15 de outubro de 2010

17. Bin Laden


Bin Laden

O coronel, comandante regional, liga ainda bem cedo e pede que providenciemos, em caráter de urgência, uma lista com o nome de todos que fossem suspeitos de possuírem, clandestinamente, arma de fogo no interior de suas residências. Tínhamos alguns nomes, mas não o suficiente para o coronel não pensar que estávamos trabalhando, menos do que se espera, para um efetivo de dois militares, numa cidade.
 A lista saiu, mau feita, mas saiu. Continha onze nomes, dez dos quais, listado de maneira incerta, baseados unicamente em denúncias anônimas.
Enviamos a lista e, poucas horas depois, estacionou em frente ao quartel, um sem número de viaturas.
Eu nunca tinha visto tantos policiais juntos, o povo da cidadezinha muito menos. Todos ficaram boquiabertos tamanha era a quantidade de armas, carros e militares ali reunidos.
Se aquele aparato todo deslocado para a cidade, que exigiu um gasto enorme para o estado e um desgaste muito grande para a tropa, não apreendesse uma quantidade razoável de armas da lista que improvisamos o coronel, no mínimo, no minimo, arrancaria meu o pescoço.
Por sorte a operação estava dando resultado: a cada duas casas averiguadas, encontrávamos pelo menos um ‘pau de fogo’.  
Naquela lista havia um nome familiar, porém incomum em termos nacionais: “Bin Laden”. Eu tinha ouvido falar que um senhor, o qual residia num povoado a alguns quilômetros, teria comprado uma arma de fogo ilegal, só que, como o coronel pediu-me a lista muito rapidamente, não consegui lembrar o nome do possuidor da suposta arma, por isso, recorri a sua aparência física para rebatizá-lo e taquei “Bin laden” na lista. O ataque às torres gêmeas nos Estados Unidos acabara de ocorrer e eu não pude deixar de notar a semelhança do mentor do ataque com aquele que procuraríamos. Era o único meio que dispunha para identificá-lo.
Todos que leram à lista riram do nome e riram mais ainda quando conseguiram prender o Juarez, recém nomeado de ‘Bin Laden’. Todos notaram que ele realmente era bastante parecido com o saudita terrorista.
A conversa dos militares com o preso fluiu normalmente do local da prisão até o quartel, apesar das curtas e ríspidas respostas que o Juarez dava.
A operação policial transcorreu, apesar da minha descrença inicial, com relativa margem de sucesso. Foram seis presos e sete armas de fogo apreendidas.
Finalizado o serviço todos os militares, todas as viaturas e todos os armamentos se foram e como sempre deixaram para trás: eu, o outro PM e o ódio de toda uma cidade. A população julgava ter sido nós os Judas que entregaram os coitadinhos que não tinham roubado, nem matado (dois únicos crimes existentes no código penal local).
Três dias após as prisões os primeiros já haviam sido soltos, e quem nos procurou tão logo minutos após alcançar a liberdade? É, ele mesmo, o “Bin laden”.
Quase que eu não o reconheço, provavelmente os companheiros de cela obrigaram-no a passar pelo barbeiro forçadamente. Pelo ciúme que se dizia ter por aquela barba, pouco provável que ele havia retirado-a de vontade própria.
Eu, besta que não sou, preparei para o pior. O que mais um ex-detento podia querer comigo além de vingança. O ódio que saltava por seus olhos, foi expresso em suas poucas palavras:
_ Você que preencheu meu BO, não foi?
_ Foi eu sim, por quê?
Nesta hora, a tendência é do que tem menos medo colocar o outro pra correr.
_ Eu quero falar uma negócio com você soldado!
Saquei o bastão de madeira, coloquei ao lado da perna arma e fiquei com ele a ponto de bala, em baixo da mesa, (só o bastão em baixo da mesa, eu não, para não deixar dúvidas!). Se ele tentasse algo eu conseguiria reagir. Um dos poucos pensamentos que passavam por minha cabeça era: “Agora que este miserável me mata”.
            Ele continuou:
          _ Ter ficado preso, terem raspado minha barba, gastar um monte com fiança e advogado até que vai, agora, eu quero saber quem me colocou este apelido de “Bin Landen”?
          O curioso foi que o ex-detento não ficou chateado com a prisão e sim com o carinhoso apelido que a ele foi atribuído. Percebi que a sua atitude, apesar de nada amistosa, não era tão agressiva quanto eu imaginava, então conclui:
            _Tudo bem seu Juarez prometo que vou identificar quem o chamou e repreender quem chamá-lo de “Bin Laden”. “Bin Laden” não é nome que se preze para chamar uma pessoa como o senhor. Pode deixar daqui para frente ninguém mais o chamará de “Bin Laden”, pois “Bin laden” é um terrorista, "Bin Laden" foi um covarde, Bin Laden foi desumano...
           Antes mesmo de eu terminar sua defesa o “Bin Laden” opa! Quer dizer... seu Juarez pôs-se para fora do quartel e até ontem não o vi.    


8. Uma festa inesquecível

            Sabe aquela festa que guardamos para sempre na memória, pelo dia agradável que nos proporcionou, por fatos marcantes que nela ocorreu, por pessoas queridas que revimos, enfim, pelos bons momentos que marcam e povoam nossas mentes por um bom tempo.
            Por outro lado, há também aquelas festas marcantes, porém, pelo sentido totalmente inverso. São as que se toma um tombo no meio do povão, derrama-se algo em alguém, sai trocando as pernas ou chamando papagaio de minha loira, além de outras centenas de decepcionantes situações que podem ocorrer no cotidiano festivo.
            Numa dessas festas de casamento da vida, naquele mesmo destacamento de sempre, um praça novo de serviço, desacostumado em ver tanta fartura de comida, entrou firme nos petiscos. Convicto de que o mundo acabaria naquele dia, comeu o que pôde e o que coube. Carne de porco, de gado, de galinha, carne de veado. Tudo quanto era bicho estava ali representado naquele banquete. Ele não perdeu a oportunidade de arrancar no mínimo uma lasquinha de cada finado indivíduo do reino animal espichado ali na mesa.
            Ao alerta do companheiro de farda, que inutilmente tentava por meio da verbalização acabar com aquela comilança desenfreada, desdenhosamente respondia:
            "É só pra ‘guentar` o serviço. Besta é você, come pouco mais tarde tá com fome." 
            Quando vi a gordura escorrendo pelos cantos da boca do praça, lembrei da jaca e da enorme batata doce com repolho que ele havia comido mais cedo, e já previ que aquela mistura não ia dar em nada que prestasse.
            Duas horas festa adentro ele tentava visivelmente disfarçar o mal-estar, entretanto as apressadas gotículas de suor que corria em seu rosto e as bruscas abaixadas para apertar a barriga denotavam que aquela combinação explosiva já estava preste a fazer efeito. Lá pelas tantas, queixou-se de uma "dorzinha" no estômago:
            __ É! Minha barriga está começando a doer, acho que foi o refrigerante quente que tomei.
            Reunindo todas as suas forças tentava manter a postura. Morria, mas não ia admitir a sua ganância alimentar e sua falta de humildade em ouvir os conselhos do colega mais moderno de serviço.
            Aquele incômodo aumentava cada vez mais. Daí segurou até onde pôde, numa certa altura, porém, a força interior superou a força que tentava frear o negócio, e ele então se viu coagido pelo próprio intestino a sair em desabalada carreira, por entre os participantes da festa. Eu, na qualidade de um mero e inocente espectador, pensei que talvez ele teria visto alguma briga e fiquei pronto para reaprendê-lo:
            _Ou “praça veio”! Quando você vir alguma confusão fale comigo antes de sair correndo.
           Ele corria igual a um desesperado, e eu corria atrás, mesmo sem ver briga alguma. Só entendi o que de fato aquela correria toda significava quando quase arrebentou a porta do banheiro, arrancou o cara que estava no recinto mijatório e trancafiou-se lá. Aí sim eu consegui perceber o que se passava e do lado de fora pude dizer:
            __“Come mais!”.
            Terminado os cem metros rasos com barreira, saiu do banheiro com ódio mortal estampado no rosto, ódio de mim. O que teria eu, pobre alma cristã, feito para magoar meu colega, até onde me recordava, única coisa que fiz foi tentar alertá-lo e dizer "come mais". Será que ela já imaginava que eu ia espalhar essa malsucedida história. Jamais!  
            Dali para cá fechou a cara, apressou-se em agradecer o dono da casa, despediu-se segurando na mão do promotor da festa, pegou na mão do noivo, da noiva e recolheu o policiamento antes da hora programada. Não falou um 'a' comigo no trajeto todo de volta.
            Sabemos que é dos erros alheios que tiramos lição, daquele dia em diante fico com fome, mas não encaro aquele gordureiro de modo algum. Quanto ao “praça veio”, ele tomou raiva de carne, não quer nem saber. Vez em quando, ainda lembro do ocorrido e só para vê-lo espernear de raiva digo:
            __ “come mais!”. 

7. Cinqüenta contra dois

Pode até parecer mentira, mas cinquenta foi o número aproximado de partidários políticos que nós (eu e mais um) enfrentamos num destes destacamentos PM da vida. Ocorreu mais ou menos assim:
Quando estávamos naquele patrulhamento rotineiro, alguns populares, até então calmos, aproximaram da viatura e solicitaram a presença da PM, numa praça de um povoado a seis quilômetros da sede do município. Em princípio, dois carros de facções políticas contrárias competiam com altíssimo som e músicas que se insultavam mutuamente. Duas pequenas multidões aglomeravam-se aos pés dos imensos veículos e, a exemplo das músicas, trocavam xingamentos e insultos. Temendo uma briga generalizada, pedimos aos dois motoristas que afastassem os carros, prevenindo assim uma rixa.
A ação preventiva funcionou, porém, única e exclusivamente para os politiqueiros, não para nós, os policiais. Quem poderia imaginar que o povão eufórico e embriagado, na iminência de perder a política, se chatearia por simplesmente ter quer abaixar o volume de seu idolatrado carro de som? Quem ia adivinhar que se enraiveceriam por terem sido obrigados a mudar o tipo de música, a ficarem longe da área de bar onde mais gostavam de comemorar, tudo isso em pleno dia em que treze de seus correligionários políticos haviam sido presos pela PM.
Os veículos afastaram-se como ordenado, mas o povo se aglutinou, desta vez em cima de nós, os militares. O povão exigia que os carros de som voltassem ao lugar de origem. Nós, os PMs, não aceitamos a suave proposta.
Uma meia dúzia de três ou quatro começou a incitar os demais em autos brados: “Vamos quebrar  a polícia! Vamo botar o pé!”.
Pensamentos mirabolantes penetraram nas nossas mentes: “Será que esse povo tem coragem? Será?”
Com plena convicção posso afirmar que em instante algum sentimos medo. Em que lugar do mundo, sessenta pessoas exaltadas e furiosas, com pedaços de pau de palanque nas mãos, proferindo xingamentos, colocaria medo em dois militares, com mais de dois anos de efetivo serviço, fortemente armados com seus revolveres ponto trinta e oito, do ano da borracha, com seis cartuchos cada um. Nunca!
Sem demonstrar temor, pois é impossível demonstrar algo que não se tem, fomos firmes em nossa ordem. A manutenção de nosso posicionamento inflamou sobremaneira os ânimos.
Relativamente prontos para a desigual batalha, achegamos aos menos exaltados e numa última tentativa de apaziguar os espíritos, pedimos para que levassem uma palavra de paz aos demais. Levaram, só que trouxeram uma desanimadora notícia:
_ Se eu fosse vocês, caia fora daqui, o povo tá doido de raiva!
Eu nunca vi um povo tão sem coração. Enquanto um ou dois dialogavam, setenta gritava; um acalmava; oitenta inflamava o povão.
Vimos então, que mesmo a contragosto, aquela era a hora de recuar. Enquanto tomávamos rumo à viatura, alguns começaram a nos seguir, uns noventa eu acho. Ao contrário do que muitos alegam, não chegamos a correr, aceleramos o passo é bem verdade, caminhamos ligeiro, mas reafirmo com relativo grau de certeza que não chegamos a correr. Uma pessoa normal atinge a velocidade de quinze , dezesseis quilômetros por hora, numa pista de atletismo, descansada e bem alimentada. Nós, naquele dia, nem chegamos a beirar esta marca, se muito, atingimos treze ou quatorze e meio.
O importante é que ninguém nos alcançou, pois se alcançassem, aí eles iam ver o que era bom pra a tosse.




6. Cerco bem feito


           Certa ocasião, um cidadão tido pelos populares como perigoso golpeou um “amigo” com um facão, abrindo-lhe a cabeça. Recebemos a informação que o malfeitor estava acompanhado de outro elemento da mesma laia. Ambos estariam armados com espingarda e homiziados em um casebre, num local de difícil acesso.
           Chegamos ao local onde supostamente estariam escondidos, eu estava acompanhado de todo o efetivo da Polícia Militar da cidade, naquela oportunidade: o outro colega.
         Desobedecendo a premissa de supremacia de força, porém muito cautelosos quanto à abordagem, efetuamos o cerco à residência (se é que dois militares em volta de uma casa constitui um cerco).
No intuito de intimidar o autor e seu comparsa, começamos a dar voltas na construção e, a cada cinco ou seis passos, mudávamos a voz, ora elevando, ora abaixando o tom, para que acreditassem que a casa estava realmente cercada por vários policiais.
            Gritos imperativos tomaram o quintal, a lateral esquerda, a direita e a frente da residência.
            _ Atenção, aqui é a Polícia Militar! Saiam com as mãos para cima! (com voz grossa).
            _ A casa está cercada (com voz não tão grossa).
            _ Se não sair, vamos entrar! (lá no fundo)
            _ Sai logo rapaz! (Lá na frente).
            A funcionabilidade do plano foi posta em xeque quando o autor enfiou a cabeça para fora da janela e avistou apenas um policial. Não obstante a desconfiança que suscitou nele, estávamos dispostos em dar prosseguimento ao nosso plano, até atingirmos nosso intento de capturar dois.
 Pensamos que talvez eles poderiam olhar de novo, caso vissem o mesmo policial desconfiariam da nossa quase inferioridade numérica, então nos preparamos para isso.
 O outro polícia, obstinadamente pegou um pano velho e sujo no chão e cobriu-se para dar a falsa impressão de que se tratava de um outro policial, agora vestido de preto, a pouca luminosidade favoreceria a ilusão de ótica.
           Devidamente vestido, a gritaria começou de novo:
            _ Polícia, saia com as mãos para cima! (com a voz totalmente diferente daquelas primeiras)
            _ Nós vamos entrar! (outra voz, outro tom)
            A gritaria assustou os autores e o plano funcionou. Um deles respondeu com voz trêmula e com ar de embriagado: "Para que este tanto de pulícia? Eu vou sair só se vocês prometer que num vai fazer nada cumigo?"
            O outro PM, perplexo com o resultado positivo da operação, erroneamente ordenou:
            _ Jogue as mãos para fora e saia com as armas na cabeça!
            Melhor seria se ele dissesse: “Jogue as armas para fora e saia com as mãos na cabeça”. De qualquer modo eles entenderam e acataram as ordens. Efetuamos a prisão dos dois e de forma solícita, como sempre é o serviço policial, respondemos ao seu questionamento:
            _ Cadê os outros “pulícia”?.
            De pronto:
            _ Falamos para irem embora, de vocês dois até mesmo um único guarda mirim dava conta.

5. Costela trincada

            Um tal de Tiãozão Matador aprontava muitas das suas no pequeno povoado de Brejo dos Mártires. Quando a PM chegava ao local de suas peripécias, ele evadia pelos fundos de sua casa, que era cheio de moitas de espinhos, estrategicamente plantados para facilitar a fuga e atrapalhar a ação da polícia. Valendo-se de sua corpulência, o Tião arrancava mato no peito, pisava em prego, pulava muros e sempre conseguia se safar.
Traçado o plano para agarrá-lo deslocou todo o efetivo policial da cidade(como sempre dois militares) para o local onde cometera mais um crime. Tendo em mente que não seria uma prisão fácil, os PMs equiparam-se com grossos bastões de madeira e reuniram toda a coragem que havia disponível.
Na casa, um PM ficou no espinhoso quintal e o outro na frente. O da dianteira da residência deu as graças:
_ Matador! É a polícia, saia com as mãos para cima!
Ao ouvir aquele chamado intempestivo o Tiãozão despertou do sono e saltou para o quintal, porém lá deparou com um militar. O PM, apesar de ter ouvido falar, não conhecia o famoso brigão pessoalmente, quando o viu e avaliou suas dimensões, ficou na dúvida se corria contra ou a favor do Tiãozão. O militar teve puramente o impulso involuntário de levantar o bastão de madeira, não sabendo precisamente se ia atacar ou se defender. Sei que, quando o autor viu o pau armado em sua direção, deu rápida meia-volta, arrebentou a porta da frente e saiu correndo, dando de cara com o outro PM.
Ficaram ali alguns segundos, olho no olho, um silêncio total. O PM movia-se para um lado, o Matador para o outro, até que resolveu sair correndo... o Matador é claro.
No momento que o grandalhão tentou sair pela tangente, o militar se viu obrigado a voar no seu pescoço e tentar dominá-lo. O colega que estava nos fundos, percebendo que o parceiro estava em dificuldade, correu para acudir..
Ele veio de lá do quintal com um chute mentalmente programado. A distância, mirou no estômago do indivíduo. Quando chegou perto, aplicou um pontapé com toda a força e velocidade adquirida no embalo. Vendo que seria seriamente atingido, o Matador virou-se repentinamente de costas na tentativa de se proteger. Devido a seu porte físico avantajado, no momento em que se virou, o PM que estava grudado igual a carrapato em seu pescoço tornou seu escudo.
O militar que desferiu o chute até pôde perceber a virada, só que de tão forte que tinha sido o pontapé não mais poderia freá-lo, tampouco pará-lo, assim o bico do coturno acertou em cheio as costelas do colega de farda, que sem saber ao certo o que lhe atingira, soltou um berro estridente:
 _Ai, filho duma égua. 
O militar atingido largou do pescoço do cidadão infrator, afastou da cena e curtiu a dor observando o agarra-agarra que agora seu colega de farda protagonizava com o grandão. Tentava inutilmente disfarçar a dor. Abotoava e desabotoava o botão da gandola, próximo ao local atingido e sutilmente com a pontinha do dedo mindinho, alisava a região machucada.  
O fato ocorreu por volta das três da matina e o povo já tinha acordado para acompanhar tão aclamado episódio, afinal se tratava de um cidadão que apesar de muito aprontador, nunca tinha sido preso e todos ali o temiam.
            Recuperado da dor e já tendo clara visão do que acontecera, o militar machucado planejou dar o troco. Ficou imaginando que aquele chute tinha sido de propósito. Dias antes, os dois haviam discutido acerca de um leite que, um comprava, dois bebiam e só um pagava. Pensando ser este o motivo do chute, falava consigo mesmo enquanto olhava para o porrete:
            _ Ah, eu desconto!
            Porém, como a honra e o dever militar fala mais alto, e o código de ética e disciplina, que trás punições para divergências desta natureza, havia sido estudado a pouco, reconsiderou e deixou para uma próxima oportunidade. 
            Pôs então o corpo no lugar, ajeitou a coluna, verificou que não havia nenhuma costela quebrada, e voltou à ação, segurando desta vez, com bastante firmeza o autor.
            O Matador, algemado dentro da viatura, fixou o olhar nos bastões de madeira cada um mais grosso que o outro e talvez esperando uma (inimaginável) represália por parte dos policiais, já foi logo dizendo: "Seu pulícia! Este apelido de Matador é por que eu trabalhava num açougue, eu matava gado. É só por isso!"

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

4. A abrupta castração do cachorro

        A escassez de vários recursos no destacamento, essencialmente os femininos, se é que me entende! Fizeram-me buscar alternativas. Não essa alternativa maldosa e pervertida que muitos de vocês vislumbraram, refiro-me ao refúgio que busquei nos livros, podem estar certos que também não eram livros de conteúdo pecaminosos - como sei que alguns pensaram. Resolvi começar por um de adestramento de cães, era o que tinha lá no quartel, então não me recriminem por isso.
Com a leitura, tornei-me um admirador dos animas. Percebi que eram seres dotados de inteligência e sentimentos - tal como alguns de nós -, e eram, acima de tudo, fervorosamente fiéis – diferente de muito de nós.    
Esse apreço que desenvolvi pelos animais, principalmente pelos cães, fez com que eu ficasse sensível à causa deles.
Como estava já a quatro dias naquele pequeno destacamento começava a observar o mundo sobre uma outra ótica, meio retorcida, mas não deixaria de ser nova. Respeitava os bichos e cumpria o código florestal, pelo menos o capítulo que acautelava os animais.  
Naquele fatídico dia um senhor visivelmente nervoso, ofegante e com olhos rasos d´água me procura. O suor gotejava de seu queixo como um alambique funcionando no máximo de sua produção. Ele sabia meu nome, talvez não a pronúncia dele, mas me disse com muito respeito, utilizando sua linguagem simples e coloquial, plenamente aceitável e característico por lá, o que havia acontecido:
            _ Ô seu Predera! - Seria Pedreira, meu nome de guerra, mas tudo bem. - Um hômi pegô meu cachurrim, que tava ingatado na cadela da muié dele e cortô o pinto do bichim no talo.
Em princípio, a detalhada narrativa me causou até uma ambigüidade de interpretação, mas com um pouco de calma pude entender que o cachorro, que era dele, havia sido violentamente submetido a uma cirurgia de mudança forçada de sexo, quando estava sexualmente acoplado a uma cadela, que ao que parece, pertencia à esposa do malfeitor.
            _ Onde esse homem mora? – Perguntei já bastante sensibilizado.
            _ Na rua do compu.
            _ Compu?
            _ É! Lá no compu de bola.
            _ Ah tá, Campo!        
   _ Eu guardei o pinto do bichim, o sinhô quer vê?
   _ Naaaaãooooooo! Carece não! Acredito na sua palavra.
            A minha pouca experiência profissional com ocorrências daquela natureza, somada ao tremendo susto que se toma ao recerber tão inusitada notícia, fez suscitar uma variedade enorme de questionamentos, dos quais os mais importantes seriam:
Qual natureza atribuir a um boletim de ocorrência de castração de cachorro: Lesão corporal, tentativa de homicídio, arrancamento de órgão?
Quem seria a vítima no caso, o cachorro ou seu dono?
Que nome atribuir ao órgão arrancado quando fosse relatar no histórico do BO. 
Deveria prestar primeiros socorros ao mutilado? O que fazer com o produto da mutilação?
Eu mesmo deveria aplicar uma pena de natureza semelhante ao malfeitor, para ele largar mão de ser ruim?
         A despeito das dificuldades apresentadas efetuei o registro do BO, e como de praxe, encaminhei todas as peças ao delegado. Quando digo todas são todas mesmo, inclusive a peça arrancada que, embora muito importante para o inquérito, provavelmente o delegado não faria questão de ver (eu disse provavelmente...!?).    
Não sei como ficou o psicológico daquele animal, perder o símbolo máximo de sua masculinidade em plena atividade não deve ter sido em nada fácil para o bicho, porém o que realmente importa é que ele ficou vivo, uma vida meio sem sentido dali para frente é bem verdade. Considerando que ele é um ser de sexo masculino, sua diversão, a partir daquele dia, ficaria restrita a correr atrás de pneus de carros e só.   

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

3. Mistérios da meia-noite

         O trabalho num destacamento PM, por sua especificidade e característica de cidade pequena, povo cheio de crenças e superstições, abala profundamente as nossas mais firmes convicções. O limite, entre o que é real e o que é produto da fértil imaginação da população local, estreita-se ainda mais quando ouvimos histórias que partem de pessoas de firme posicionamento e séria reputação.    
Quando um jovem me noticia algumas dessas histórias, não atribuo qualquer credibilidade. Quando os “causos” partem dos mais velhos, aí sim me trazem calafrios. 
De outra sorte, também não são incomuns fatos envolvendo diversas espécies do reino animal, além do próprio homus sapiens é claro. Cavalo acusado de crime contra a liberdade sexual de uma égua, papagaio que infringi a lei do silêncio, cachorro ladrão de carne em açougue, estupro de bezerra não são ocorrências completamente atípicas.
      Um fato ocorrido naquele longínquo e diminuto destacamento de Polícia Militar englobou os dois requintes: o animalesco e o assombroso.
Sei que a exposição dessa história contraria a vontade do protagonista (que podem acreditar, não fui eu!), mas mesmo assim, levarei ao conhecimento de todos. Entendo que o acontecido pode servir de instrução e engrandecimento intelectual daqueles que futuramente poderão vir a trabalhar, ou já trabalham, em destacamento. Só faço uma pequena ressalva: militares com angina, problemas cardiorrespiratórios, histórico de infartos na família, por favor, não leiam este texto, a possibilidade de perdermos um colega enfartado é muito grande.
Pois bem, era uma sexta-feira treze, meia noite. O militar consultava o arquivo a procura de um Boletim de ocorrência com a natureza: encontro de cadáver. Com as costas voltadas para a rua percebeu, pela parede a sua frente, que alguém havia adentrado ao quartel. Displicente e aguardando o cumprimento, não se virou para verificar quem era e continuou a busca ao boletim. Observando a parede, percebeu uma sombra surgir vagarosamente ao seu lado e na cabeça dela, dois enormes chifres. A sombra cresceu até que se estagnou na altura de seus ombros. O PM estava perplexo e desencorajado em olhar para trás, piscava forte e esfregava os olhos já cheios d’água. Olhou fixamente para a parede e confirmou que a sombra não era unicamente fruto de sua assombrada consciência.
Amedrontado, ameaçou mover um braço. Antes que esboçasse qualquer movimento, um som nada convencional saiu da boca daquilo que estava atrás dele e ocupou todo o ambiente. O militar permaneceu ali, paralisado, ou melhor, quase paralisado, pois os calafrios e a tremura tomaram conta de seu corpo. Os pelos se arrepiaram, o coração acelerou, os fundos das calças já não estavam como antes, sorte que a farda também era marrom.
Por um instante achou que desmaiaria de medo. Tentou segurar de todo modo, todavia a bexiga bambeou e nessas alturas já deixava escapar algumas gotículas na dianteira da calça.
Repentinamente um surto de coragem ascendeu por seu trêmulo corpo. Firmando-se nas pernas, respirou fundo, rangeu os dentes e, num lapso de memória, lembrou-se de que era um militar, que militar não teme, que militar é macho (até mesmo as femininas, quando necessário), militar é superior às forças da natureza, militar não chora, nem faz o que ele quase fez nas calças, ou fez, não sei. Nesse momento, empurrado por um espírito de bravura e num esforço descomunal, voltou-se para a porta e encarou o bicho, que além dos chifres tinha também uma grande barba preta. Olhou nos olhos daquele ser repugnante e disse:
_ Racha fora daqui! - Ordenou bravamente -. Eu não tenho medo de você, some!
Nenhuma resposta partiu daquele bicho que o olhava fixamente, ali da porta.
Um pouco mais calmo e já conseguindo segurar o fluxo urinário, pegou um bastão de madeira, levou bruscamente em direção ao bicho e mais firmemente, ordenou:
_ Sai daqui porqueira!
Intimidado e sentindo firmeza nas palavras do militar, o bode virou-se, fez aquela típica jogadinha de poeira pra trás, mirou a rua e deixou o quartel.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

2. ♫ De quem será... De quem será ?♫

Dois cidadãos roubaram algumas bicicletas. Nós prendemos e os conduzimos até o quartel, perfazendo um percurso de seis quilômetros no total. No trajeto, tivemos aquela velha e amigável conversa (tudo conforme preconiza os direitos humanos) para que lembrassem onde tinham deixado as peças que haviam retirado das bikes, ambos tinham esquecido onde colocaram.
Até aí tudo normal e perfeitamente compreensível. Em um mundo essencialmente capitalista como o contemporâneo, em meio ao caos urbano-social, frente à brusca baixa do dólar e a queda das ações da Bovespa, não era de se estranhar que aqueles rapazes, residentes de um povoado de trinta habitantes e com o segundo ano do primário já completo, esquecessem onde guardara seus pertences, quanto mais os do outros.
            Repentinamente, sem pedir licença, no meio da conversa, um odor característico e nada agradável elevou-se e ocupou todo o interior da viatura. A conversa cessou, os rostos se enrugaram, o clima ficou pesado.
Para termos absoluta certeza e não caluniar ninguém, aguardamos um pouco com o objetivo de confirmar se aquilo era realmente verdadeiro. Para infelicidade de todos e tristeza geral da nação era real, podem acreditar, era muito real mesmo, meu nariz que o diga.
De maneira despistada deixei a caneta cair, abaixei e verifiquei debaixo do coturno, não havia nada de comprometedor ali. Sorrateiramente o Sargento olhou para mim - ele sentiu primeiro. Eu olhei para ele - senti depois. Pensei em fazer uma acusação aos já acusados, desta vez, de um crime diferente, crime ambiental: poluição atmosférica. Imaginei, então que seria um tanto quanto desumano atribuir um cheiro daquele a um ser humano ainda vivo.
Sem querer fazer falsas, ou pelo ao menos supostamente, falsas acusações contra o colega de farda, o Sargento, que era bem mais experiente que eu, até mesmo nesses assuntos, teve a salvadora iniciativa de indagar os meliantes:
_ Qual dos dois fez isto?
_ Isso o quê?
_ Borrou o banco da viatura.
_ Foi eu não! – O outro também respondeu:
_ Nem eu.
_ Vocês estão falando que fui eu então? – Perguntou bravo o sargento.
Em coro:
_ Não seu Sargenti.
Demorou, mas percebi que a culpa estava recaindo sobre alguém e que esse alguém era eu. Fui obrigado a defender-me.
_ Olha só “nêgo véio”, lá no quartel tem uma máquina que descobre de quem e de onde saiu isso. Fala logo! Deixa a gente descobrir não que é pior para vocês.
_ Juro por minha vó que não fiz isto.
_ Juro pela mamãe, foi eu também não, Predera.
Por colocarem com inabalável convicção a avó e a senhora sua mãe no meio do rolo, acreditei neles. O fato de não temerem a minha suposta máquina detectora de gases aumentou ainda mais a credibilidade nos dois. Pensei um pouco e cheguei a triste conclusão de que não tinha sido os meliantes e eu tenho pleno controle sobre meu corpo, logo, eu também não tinha sido.
Não quero acusar, longe disso, mas até hoje não engulo aquela história de que a cara feia feita pelo Sargento, segundos antes da proeza mal cheirosa, foi por conta de um dente dolorido.